‘Fleabag’: no fundo do poço tem um alçapão (mas também tem escada)

Com poucos episódios curtos, a série da Amazon Prime parte de uma premissa irresistível nos dias de hoje: é possível perdoar quem parece ser imperdoável?

22.05.2019  |  Por: Gaia Passarelli

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‘Fleabag’: no fundo do poço tem um alçapão (mas também tem escada)

Fleabag conquista na primeira cena: uma mulher prestes a abrir a porta de casa para um cara numa noite qualquer. Em instantes ficamos sabendo que é um booty call, que já passa das duas da manhã de terça-feira, que a moça é britânica, bebeu vinho, está depilada e usando lingerie cara. A gente sabe tudo isso, e outras coisas mais, porque Fleabag, a protagonista, nos conta.

É fácil julgar Fleabag, assim como é fácil julgar qualquer mulher que fale de sexualidade, sacanagem e depilação íntima com desprendimento. É por isso, e não por se enxergar 100% no modo de vida da personagem, que a audiência se identifica com ela de imediato.

Mas tem mais em Fleabag, a série de Phoebe Waller Bridge, atriz-criadora-escritora, exibida pela Amazon Prime, que acaba de ganhar segunda temporada.

De início, a protagonista (que nunca dá uma explicação sobre seu nome, apesar de todo mundo na série ter respeitáveis nomes ingleses) se apresenta como uma mulher estilosa, mordaz e no comando da sua própria vida. Muito disso se confirma ao longo dos episódios (que são apenas seis, com cerca de 25 minutos de duração), mas logo fica claro que se tem uma coisa que falta na vida dela é controle. Ela está tão no fundo do poço quanto é possível, emocionalmente falando.

É essa perda de controle, a óbvia vulnerabilidade emocional e o caos que é a vida da Fleabag que me causam identificação, em maior ou menor grau, dependendo do estado de descontrole da minha própria vida. Eu não estou recebendo visita de um cara gato para uma sessão de sexo com abandono feroz numa madrugada de terça-feira qualquer (gostaria? gostaria), mas a minha própria vida tem muito de disfunção familiar, relacionamentos horríveis, más escolhas e melancolia temperada com lindas camisas listradas e batom vermelho, como a dela. Talvez como a sua.

O lento desenrolar da história, em que você vai amando-odiando a protagonista e as pessoas que a cercam, tem final abrupto. No entanto, você fica com uma sensação de que era impossível ser diferente. Que poderia inclusive terminar ali.

Mas não. Há uma segunda temporada, não prevista porém totalmente justificável, que acaba de estrear com o mesmo formato de episódios poucos curtos, com muita quebra de quarta parede e ironia sufocante baseada principalmente no irresistível cinismo de Fleabag e do mundo zoado que ela habita. Há mais personagens agora, inclusive um padre católico (chamado apenas Padre), e participações de gente da realeza do cinema britânico (oi, Kristin Scott-Thomas).

A premissa, no entanto, segue a mesma: é possível perdoar quem parece ser imperdoável? A segunda temporada começa mais de um ano depois do final da primeira e somos apresentados a uma Fleabag ligeiramente diferente e ainda muito parecida com muitos de nós quando começam a amadurecer: uma pessoa melhor, ainda que continue longe de Melhor Pessoa.

 

Gaía Passarelli é jornalista e escritora, autora de Mas Você Vai Sozinha? (Globo Livros, 2016). Nascida e criada em São Paulo, mora num prédio velho da Bela Vista com o filho, três gatos e uma crescente coleção de guias de viagem. Você a encontra no twitter @gaiapassarelli e no site gaiapassarelli.com

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