Fome, amor e machismo arcaico: a autobiografia de Evelyn Scott

Publicada há quase um século, 'Escapada', em que a escritora americana conta os tempos em que viveu no Brasil, chega finalmente ao país

11.09.2019  |  Por: Alice Galeffi

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Fome, amor e machismo arcaico: a autobiografia de Evelyn Scott

A escritora modernista norte-americana Evelyn Scott talvez tenha surgido muito antes do seu tempo, e assim como outras intelectuais feministas merece ser revivida através de sua escrita. Para nossa sorte, Escapada, sua autobiografia publicada em 1923 sobre os tempos em que viveu no Brasil, no início do século 20, chega por aqui em setembro (com quase um século de atraso), pela Versal Editores.

O livro conta a jornada romântica, inocente, corajosa e extremamente difícil de Evelyn, que em 1913, aos 17 anos, fugiu de sua conservadora família norte-americana para o Brasil com Cyril Kay-Scott, médico e pesquisador da Universidade de Tulane, muito mais velho que ela, casado e pai. Não foi um simples caso de amor proibido: o affair virou não só um grande escândalo social como um caso de polícia, e ocupou por algum tempo as páginas dos jornais. Após cinco longos anos no Brasil, Evelyn finalmente retornou ao seu país para se tornar a grande escritora que é.

Foi Maria das Graças Salgado, professora de literatura da Universidade Rural do Rio de Janeiro, quem trouxe a obra de Evelyn Scott para o Brasil, após conhecer o texto de Escapada e se apaixonar pelo livro. Nesta entrevista, a professora fala sobre Evelyn, sua jornada brasileira e o que a levou a traduzir e lutar para publicar a obra até então inédita em nosso país.

Pode contar um pouco sobre essa fuga? Com quais paradigmas e normas ela estava rompendo?
Quando Evelyn e Cyril se conheceram foi paixão mútua e instantânea. Eles estavam tão apaixonados que quando começarem a planejar a fuga, não lembraram, ou sequer tomaram conhecimento, de que a Primeira Grande Guerra estava a caminho. O fato é que eles adotaram nomes falsos e fugiram de Nova Orleans primeiro para Nova York, depois Londres e, finalmente, para o Brasil. Isso tudo sem passaporte ou qualquer documento de identificação, e apenas 700 dólares no bolso.

Ao dar esse passo em nome do amor, Evelyn Scott deixava para trás família, nome, riqueza, conforto e segurança para ir em busca de um futuro absolutamente desconhecido. Ela era uma jovem extremamente culta e voluntariosa que estava rompendo com um modelo familiar e social que tanto criticava em nome do amor. Ela não tinha a menor ideia do que lhe aguardarva no Brasil durante os cinco longos anos que viveu no país.

Acontece que Evelyn Scott era menor de idade e filha única de uma típica família aristocrática do sul dos Estados Unidos, e eles não se conformaram com aquela situação extrema. Havia também a mulher de Cyril, uma pianista da alta sociedade muito conhecida, e também quatro filhos que ele estava abandonando. Toda essa conjuntura social fez com que o caso tomasse proporções gigantescas.

Ao chegar aqui, que tipo de desafios ela encontrou? Como se deu a construção de uma nova identidade em país estrangeiro?
Evelyn saiu do conforto aristocrático sulista americano para enfrentar um Brasil ainda muito precário, quase primitivo. Para ela foi muito doloroso se encaixar na nova sociedade. Ela não sabia nada sobre o país; não conhecia a comida, nem o clima; não falava uma palavra de português. E pra complicar tudo, quando chegou ao Brasil, descobriu que estava grávida.

Os desafios foram enormes. Ela enfrentou um parto extremamente difícil em condições insalubres na periferia de Natal; tinha dificuldade de comunicação porque não falava a língua, apesar de ter uma percepção incrível dos problemas sociais à sua volta.

Evelyn descreve um sentimento de não pertencimento e achava que sofria discriminação em dobro: por ser estrangeira e por ser mulher. O machismo vinha de todos os lados, as mulheres lhe olhavam de soslaio e os homens com desdém. Por essas questões, acho que ela não chegou a construir uma identidade propriamente no Brasil, pois vivia uma fragmentação identitária; vivia em constante busca de si mesma.

Qual a relação dela com o Brasil e como essa passagem em nossas terras pode ter despertado a necessidade da escrita?
Tendo vivido uma experiência tão dolorosa, é difícil imaginar que Evelyn tenha desenvolvido amor pelo Brasil, embora ela não chegue a explicitar desamor pelo país. Mas o sofrimento era grande e os desafios enormes. O maior de todos foi a luta pela sobrevivência no sertão da Bahia, onde ela passou fome e ficou em grande isolamento em um rancho que o casal havia comprado na esperança (ou sonho) de criar carneiros.

Ao mesmo tempo, ela amava os animais tropicais. Tinha um verdadeiro zoológico em seu rancho, desde cachorro, passando por tamanduá, macaco, papagaio e até bicho-preguiça. Penso que talvez, ela tenha amado o Brasil através dos animais com os quais convivia no cotidiano doméstico. E as descrições que ela faz sobre a paisagem são belíssimas. A paisagem dos trópicos e os animais serviram como grande fonte de inspiração para sua escrita.

Muitos anos depois, já de volta aos Estados Unidos, ela chegou a dizer que a experiência brasileira teria sido definidora para sua vida, como mulher e como escritora.

Por que Escapada demorou tanto para chegar ao Brasil? Qual sua relevância para nossa cultura?
Evelyn Scott faz parte da lista de escritoras que foram apagadas do cânone literário. Ela foi muito famosa durante as décadas de 1920 e 1930 e depois desapareceu gradativamente. Escapada está dentro desse conjunto da obra.

De qualquer forma é espantoso que lá atrás os editores brasileiros não a tenham descoberto, já que se trata de uma história tão singular vivenciada no Brasil e que foi publicada em 1923. Esta é uma obra que nos ensina muito sobre um período importante da história e da cultura brasileira, o período da primeira guerra mundial, um marco histórico que inaugura o movimento modernista em toda parte.

Como você descobriu a obra de Evelyn, e o que mais lhe impressiona nela?
Eu sou linguista e há muito tempo me interesso pela linguagem das escritas confessionais, como cartas, diários e autobiografias. Um dia, o historiador britânico Oliver Marshall, um grande amigo, me mandou e-mail falando desse livro incrível sobre o Brasil, Escapade, que eu ia gostar de ler etc. Comprei o livro pela internet, e quando chegou eu não consegui parar de ler.

Havia páginas eram de partir o coração; algumas, super perturbadoras e outras, difíceis. Mas nenhuma suscitava indiferença. Fiquei fascinada não apenas com aquela experiência, sem dúvida bizarra e incomum, mas principalmente com a poesia com que Evelyn Scott é capaz de usar para descrever o cotidiano duro de uma jovem mulher em permanente busca de autoconhecimento e superação.

E um dos aspectos que eu mais valorizo no testemunho de Escapada é a coragem de Evelyn Scott de combater o papel de vítima de um homem poderoso e mais velho que a sociedade americana, especialmente sua família, tentaram lhe impingir. Ela se coloca como autora de uma experiência compartilhada. De igual pra igual. Isso é de um feminismo incrível, numa época em que sequer a palavra existia.

Como tradutora da obra, fico feliz e orgulhosa em saber que os leitores brasileiros poderão, finalmente, usufruir da leitura de uma obra tão singular.

É possível definir a escritora como “uma feminista muito à frente do seu tempo”?
Com certeza. Quando tinha apenas 15 anos de idade, em 1911, fez campanha nos Estados Unidos pela legalização da prostituição como uma forma de prevenir doenças venéreas nas mulheres. No Brasil, mesmo sem falar português direito, ela se meteu em muita briga de vizinho para proteger as mulheres e as crianças da violência dos homens. Mas seu maior legado foi ter dado voz às mulheres em sua obra como um todo.

 

Alice Galeffi é editora e diretora de arte. Dirige a editora Guarda-Chuva há seis anos, é cocriadora e designer da revista Nin e hoje faz mestrado em Tipografia e Editoração na Faculdade de Belas Artes de Lisboa

 

3 Comentários

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3 respostas para “Fome, amor e machismo arcaico: a autobiografia de Evelyn Scott”

  1. Olá , estou acompanhando este site e estou adorando seus artigos são muito bons mesmo parabéns.
    Vida cap

  2. Jussara Maria Amorim Cabral disse:

    Quero muito comprar esse livro..como faço..para comprar??

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