Gente certa é gente aberta 

Tá todo mundo com medo de falar a coisa errada na hora errada. E se a gente se abrisse para a lisergia que é ser humano e imperfeito? É a diversidade e o diálogo que nos levam pra frente  

13.04.2022  |  Por: Mariana Caldas

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Gente certa é gente aberta 

Quem não está com medo de se expressar na internet provavelmente não está na internet. O pânico do cancelamento pode ser silencioso, podemos fingir que ele não existe, mas ele é real e também muito simbólico do momento político e social que estamos vivendo. Como muito bem descreveu a psicanalista Vera Iaconelli no último episódio da nossa série “Tapa Na Cara”, criada, escrita e apresentada por Tati Bernardi: “Com medo do outro, a gente se associa a alguns, e pra que não exista animosidade aqui entre nós, a gente estabelece um inimigo comum. Tem essa ideia de cardume e esse cardume me protege. Esse mecanismo é muito antigo. O ter que odiar é uma outra dimensão disso.” 

O problema de viver com medo é que ele intoxica, confunde, trapaceia, e na maioria das vezes também rouba a nossa autenticidade, a nossa natureza. E principalmente a nossa possibilidade de criar uma conexão verdadeira, tanto com a gente mesmo quanto com o outro. “A gente tem uma fantasia de só estar cercado de pessoas que são idênticas a nós, o que seria insuportável. Temos essa dificuldade de aguentar a diferença, de aguentar esse outro, e ficar denunciando mostra um pouco da nossa insatisfação com a nossa vida, com as nossas escolhas. Essa perseguição vai criando uma ideia de que o outro está errado e vai fazendo uma sombra em mim porque quando eu coloco o foco no erro do outro eu fico no lugar dos bons”, explica Vera.

Crescer dói, e tudo o que estamos vivendo coletivamente pode ser muito trabalhoso, muito desafiador, mas também é muito bonito e fundamental. Principalmente se conseguimos olhar ao redor e perceber a diversidade como parte essencial da nossa evolução. É ela que nos leva pra frente. E conseguir olhar e aceitar o que é diferente da gente também nos ajuda a perceber a nossa própria unicidade, o nosso lugar no mundo. O problema é que precisar estar sempre do lado certo de uma situação, como uma forma de sobrevivência, pode nos dar uma falsa sensação de superioridade e ao mesmo tempo nos deixar em um lugar muito pequeno e apertado. 

Viver é mais profundo do que a gente gostaria que fosse porque é sobretudo, e também, sobre o quão conscientes nós escolhemos ser. Ter que ser perfeito, saber de tudo e estar sempre do lado certo implica não ser muitas coisas que talvez a gente seja, e quando a gente não pode ser muitas coisas que nós somos, como seres humanos essencialmente imperfeitos, a pressão pode ser insuportável e insustentável a curto, médio e longo prazos. “A gente sente inveja, sente ciúme, sente medo, compete, a gente tem milhões de coisas, e quanto mais a gente puder falar disso, acessar isso, e ser honesto, menos chances disso voltar, disso ficar recalcado”, comenta Vera. E a verdade é que por mais difícil que seja aceitar, o erro também é parte fundamental do nosso crescimento.

Para Vera, a possibilidade de falar sobre a diferença é não só a grande proposição da democracia, como também um ato de solidariedade e uma característica de laços sociais não fascistas: ”A gente é humano e tá querendo fingir que é outra coisa, que chegou no Olimpo do saber total, e aí começa a fazer burrada mesmo, começa a ficar absolutamente paranoico. Normalmente o que está em jogo é a ideia de totalidade. É sempre a ideia de totalitarismo, ali não tem nuance, não tem riqueza. O problema do cancelamento é o desaparecimento do outro, é a fantasia de anulação do outro, é o silenciamento do outro”. 

O nosso medo de ser preconceituoso é legítimo e louvável, mas ele não pode ser maior do que o nosso desejo de expandir a nossa vivência pessoal e coletiva. A diversidade é o assunto da vez porque estamos com medo ou porque queremos nos despedir das velhas formas do viver? No fim o cancelamento é um sintoma de uma estrutura patriarcal, racista, transfóbica, e de alguma forma é muito natural e necessário que ele se manifeste nesse momento de transição que estamos vivendo. Por mais doloroso que seja socialmente, ele também faz parte de um processo de encontro com uma nova consciência, com uma nova percepção, uma nova possibilidade de ser, estar e se relacionar em um mundo mais justo, mais plural, e ouso dizer: mais feminino. Mas para isso acontecer precisamos estar abertos e dispostos a também ultrapassá-lo. 

 

Mariana Caldas, produtora de conteúdo da Hysteria, é diretora, fotógrafa e jornalista. Seu trabalho autoral investiga e revela a natureza selvagem que vem de dentro

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