Instinto maternal ou imposição social?
A peça de teatro 'Dentro' discute a posição da mulher no mundo com histórias reais e fatos históricos, cafezinho e memória
10.05.2019 | Por: Laura Nielsen
A maternidade era algo que nos perturbava e nos instigava. Natássia Vello, diretora da peça, e eu, atriz, começamos a dedicar nossos encontros a pensar sobre a escolha de ser ou não mãe. Nos perguntamos se toda a mulher nasce mesmo com o tal “instinto maternal” ou se isso seria algo cultural, construído no nosso imaginário e, de alguma forma, imposto socialmente.
Ao mesmo tempo em que a maternidade era algo que pulsava e se apresentava como uma temática, o Brasil estava às vésperas de uma eleição presidencial, vivendo um momento de crise política, de muita polarização e violência. Tornou-se absolutamente impossível pra nós criar uma peça que não dialogasse, de alguma forma, com esse momento político do nosso país.
Estava posto o desafio: como unir o desejo de falar sobre a maternidade com o contexto político e social? Nossa estratégia foi criar uma sinopse em que apresentaríamos várias mulheres de diferentes gerações de uma mesma família. Assim, começamos a resgatar memórias pessoais de mulheres de nossas famílias e memórias coletivas, da História oficial do Brasil, com a intenção de entrelaçar essas narrativas, questionando a veracidade das mesmas.
Eu, Natássia e Clarissa Menezes começamos a abrir o baú de nossas famílias.
Sempre tive interesse nas histórias das mulheres que me precederam, mas nunca tinha tido a oportunidade de ir tão fundo nessa pesquisa. Conversei muito com minha mãe e minhas tias, que relataram inúmeras histórias interessantíssimas. Abri caixas e mais caixas guardadas há anos, e cheias de poeira, onde estavam fotos, recortes de jornal, pequenas anotações, cartas e objetos dessas mulheres da minha família. Mulheres já mortas, mas que ali, naquele processo de escavar o meu passado, se revelavam para mim de uma forma única e cheia de vida.
Nossos ensaios passaram a ser o compartilhamento desses materiais. Sempre em roda, Natássia, Clarissa e eu narrávamos histórias e apresentávamos objetos do passado. E eram encontros deliciosos, pois ao falar do passado e das nossas antepassadas, nos sentíamos encorajadas a falar de nós mesmas, dos nossos segredos e angústias. Foram momentos preciosos em que exercitamos a escuta e a exposição das nossas intimidades.
Vejo a cena de Dentro completamente afetada por esse processo. Oferecemos ao público uma experiência: tomando um café, em um clima despojado, ele não apenas é convidado a ouvir histórias e pensar sobre a ancestralidade, o feminino e a história do nosso país, mas também tem oportunidade de falar e participar ativamente da cena.
Uma carta escrita em 1944 por Renato, avô da Clarissa, e destinada à avó, futura esposa, foi inteiramente incorporada à dramaturgia. Nela ele explica como sua noiva deveria se comportar como mulher e namorada. Suas palavras revelam um machismo tão extremo que chega a ser difícil de acreditar que um dia aquele comportamento foi tido como natural.
Esse processo de pesquisa foi muito rico. Sinto que, ao olhar para o passado e para minhas raízes, consigo entender um pouco melhor meu lugar no mundo. É curioso perceber como repetimos padrões, como nos rendemos a convenções já estabelecidas. A peça tenta quebrar essa lógica. Ao apresentar a personagem Leonor, que aos 40 anos volta à casa que um dia foi de sua família para encontrar suas antepassadas já mortas e refletir sobre suas escolhas (dentre elas a decisão de não ser mãe), buscamos afirmar o desejo e a potência feminina, evidenciando, ainda, como nós mulheres fomos subordinadas ao longo da História.
Dentro: de 24 de abril a 26 de maio de 2019 no Teatro III do CCBB RJ
Dramaturgia: Diogo Liberano
Direção: Natássia Vello
Atuação: Laura Nielsen
Pesquisa e Colaboração Dramatúrgica: Clarissa Menezes, LauraNielsen e Natássia Vello
Laura Nielsen é atriz, diretora e professora de teatro
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