Mais teta e menos treta

Sobre uma possibilidade de existência trans plena e cheia de graça

06.04.2022  |  Por: Maria Lucas

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Mais teta e menos treta

Nascida em um lugar chamado Valão, na Favela da Rocinha (RJ), ao lado de uma lixeira, eu aprendi a construir outros possíveis mundos para sentir menos o cheiro do lixo e da vala, e apreendi muito aí também com uma mulher forte, uma Maria. Minha mãe, Maria do Carmo Pereira, a dona Carminha. Vinda de uma linhagem de Marias, todas nascidas no interior da Paraíba e algumas tendo migrado para a “cidade grande”, o Rio de Janeiro, para melhores qualidades de vida e esperançosas por menos dívida. Me batizou Lucas no nascimento, após seu namorado, meu possível pai, tê-la abandonado pra sempre e não apenas por um momento: situação muito recorrente, infelizmente, em famílias brasileiras, o abandono parental por parte de pais machistas e irresponsáveis.

Cresci, vivi, me inspirei e senti que seria artista, na arte tentando viver e não apenas resistir, re-plasmar a minha existência em telas, letras, cenas, pois entendo que meu percurso foi muito importante como bixa-travesty. As caixinhas não me cabem, sei que posso e devo ocupar vários lugares e me lembro sempre de onde vim e de quem veio antes de mim: e não só do sangue materno que corre em minhas veias, falo também da minha outra ancestralidade, as minhas trans ancestrais. Pois em minhas veias hoje correm próteses biológicas que me auto-apliquei, na tentativa de bloquear alguns hormônios e expandir outros, que me fizeram cair pelos e pênis e crescer peitos, curvas, estrias, celulites e até mudar meu cheiro. Esse corpo passa a então entender a sua existência “torta” (em relação à sociedade que o encaixota, talvez por ele não ter nascido com xota) e a se apropriar dela, se empoderar dela: eu não sou corpo, sou corpa! Eu não sou binária, mas no binarismo sou mulher, eu não sou apenas Lucas, sou agora Maria Lucas em todos os documentos, até na certidão de nascimento, posso comprovar pra quem me exigir, pra quem eu quiser.

Entender-se assim faz o mundo (cis) entender-te como trans, um transtorno biológico, cientifico, social. Nessa reconstrução do meu corpo, de nossos corpos-corpas, nos apropriamos de próteses corporais assim como quem não é trans também o faz… mas acontece que nós fazemos em um auto-processo de dúvidas, desejos e inquietações que NENHUMA pessoa que não está alocada na caixa “trans” tem a possibilidade de entender. Acontece que nesse mundo protético, tudo que está associado a saúde, corpo, moda passa por processos neoliberais e capitalistas do consumo, fazendo com que a fatia social na qual me encontro precise estar alocada sempre à parte disso, na precariedade. Construímos nossas táticas, aplicamos hormônios e silicone industrial (e apreendemos lá com nossas travestys trans-ancestrais), ocasionando assim, também, uma liberdade do CIS-tema, mas uma baixa expectativa de vida e variados danos às nossas saúdes*.

Hoje, eu e muitas outras travas do agora OUSAMOS não apenas viver (que já é um fardo, não por ser trans – que é maravilhoso – mas por como somos tratadas e excluídas socialmente), mas somos ousadas também ao reivindicar outras formas de possuirmos liberdades sobre nossas corpas. É nesse momento que entendo a impossibilidade de anos que possuo de alcançar dinheiro para aplicar ao meu corpo o tão sonhado (por mim e por muitas) próteses-tetas, sem necessitar envolvermos-nos em tretas.

Sou artista e a arte me fez chegar aqui e viver, ser, travesti. Realizo então um financiamento coletivo, para que quem se co-mova comigo auxilie nesse processo de saúde, artístico e autoral, que culminará na construção de um novo livro sobre este processo, mas também em ser uma mulher de seios fartos, isso é um fato! Como me co-movo em coletivo, promovo pra quem colabore a partir de R$ 10 vários “brindes” como livro meu, obras de arte de outros artistas e muito mais. Esse é um passo importante na trajetória de QUALQUER MULHER TRANS desse nosso país que nos mata, empurra para a marginalidade e hipersexualiza… e eu, como cria da favela, travesti e artista independente, me proponho, assim como venho fazendo sobretudo em meus projetos autorais, viver isso de forma escancarada, escancarando o quanto nossa vivência pode ser bonita, filosófica, artística e estética, consciente, leve, empoderadora e sem tretas… mas com belas tetas.

Eu falo por mim, pois sou uma, mas também posso falar por muitas, pois sou várias… várias vozes do ontem e do hoje que ecoam em mim no agora, reverberando um amanhã com uma vivência trans com mais poesia, filosofia e muito muito muito mais satisfatória.

AJUDE UMA(s) TRAVESTI(s)!

* Tenho acompanhamento de saúde (endócrino, psicológico e psiquiátrico e muito mais) pelo projeto Corte Trans na Fiocruz, pelo qual fui encaminhada para o SUS, com o intuito de entrar na fila para minhas cirurgias de implante de próteses mamárias e de redesignação genital. Acontece que esses processos são extremamente burocráticos e grande parte do sistema de saúde não está preparada para nossos corpos trans, tendo eu já sofrido diversas exclusões, violências transfóbicas e abusos verbais e sexuais com profissionais de saúde em todos os estabelecimentos pelos quais precisei passar ao longo da minha vida. É muito bom pensar que podemos conseguir passar por esses procedimentos em hospitais públicos, mas tristemente são, além de violentos como mencionei, ultra burocráticos, tendo pessoas que ficam por mais de dez anos apenas na fila, à espera. Fora essa possibilidade, em clínicas particulares, a prótese mamária pode chegar até R$ 15 mil e a cirurgia genital gira em torno de R$ 50 mil, muito distante da realidade de mulheres trans e travestis que são expulsas, excluídas de variadas formas do mercado formal de trabalho. Não é a toa que no Brasil a expectativa de vida de uma mulher transexual é de 35 anos, pois somos alijadas, dentre muitas outras coisas de caráter público, da saúde: assim estende-se a cultura da utilização de silicone industrial e de cuidados de saúde de nós com nós mesmas… eu mesma comecei a me hormonizar de forma improvisada, na casa de uma amiga, pois a saúde, a educação, o mercado de trabalho e muitas outras “instituições” expulsam o corpo travesti, nos empurrando pra precariedade e vulnerabilidade social, para morte prematura, prostituição compulsória, situação de rua e drogadição. Lembrando que o Brasil é pelo décimo terceiro ano consecutivo o país que mais mata mulheres trans e travestis, sendo também o país que mais consome conteúdo pornô com corpos trans-femininos: o país que mais nos deseja como objeto sexual é o que mais nos mata. Portanto, ser travesti, favelada, artista independente aqui em 2022 e ousar tornar público o meu desejo e captação de verba para TRANSformar o meu corpo é um ato político de rebeldia e afirmação de uma cultura que precisa ser respeitada.

 

Maria Lucas é uma multi-artista carioca, tendo atuado nos campos da escrita, crítica, atuação e performance cênica. Autora do livro “Esse Sangue não é de Menstruação, mas de Transfobia” (ed. Urutau) e ganhadora do prêmio de textos ensaísticos do Instituto Moreira Salles, foi publicada pela revista “Serrote”, com o texto “Próteses de Proteção”

 

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