Manual para quem busca a ‘plenitude’
Num mundo que nos assoberba de novidades o tempo todo, como saber qual será mesmo a melhor — e, acima de tudo, a mais eficaz — terapia para si?
09.09.2020 | Por: Pureza Fleming
Nunca a procura por ajuda especializada nas questões da mente foi tão intensa, como é nos dias de hoje. O que não é de estranhar. Não há memória de um mundo — chamemos-lhe antes de uma sociedade ou até de um sistema — tão solicitador como é este em que vivemos. Parecendo um paradoxo, já que nunca a vida nos foi tão facilitada, na verdade não é. Quanto mais temos mais procuramos e quanto mais procuramos mais desesperamos.
Estamos mimados pelos tempos modernos e acreditámos piamente que tanto facilitismo só nos deixaria mais exultantes e completos. O que se passa, na realidade, é que esta busca incessante pela plenitude, bem como pela constante felicidade, só nos tem trazido dissabores — qual bando de crianças choronas para as quais nunca nada chega. Por essas e por outras, mas também por um estilo de vida acelerado que se tem revelado cada vez mais insano, a humanidade vem-se deparando com um mar de doenças de cariz psicológico, mental e/ou emocional, como é o caso da depressão, do stress, do burn out ou ainda da tão célebre ansiedade, entre outras. As mesmas que tanto têm dado que falar — e mais ainda que chorar. Os psicólogos que o digam. Os coaches de tudo e mais alguma coisa que o confirmem. E, depois, o aparecimento de terapias várias: das constelações familiares à psicologia positiva; da biorressonância ao reiki; da terapia regressiva à programação neurolinguística.
Nos dias que correm, quando o assunto é a procura pela terapia perfeita, o céu é mesmo o limite. E não é em vão que tal acontece. Um estudo levado a cabo pela Universidade da Califórnia, em Los Angeles, no ano de 2007, revelou que colocar sentimentos em palavras produz, de facto, efeitos terapêuticos no cérebro. De acordo com aquele estudo, verbalizar os sentimentos tornaria a tristeza, a raiva e a dor menos intensas. Em outras palavras, aquele estudo defendia que expor as nossas preocupações (mesmo as “insignificantes”) — ainda mais com alguém que estaria treinado para nos ajudar a administrá-las — seria positivo para o nosso bem-estar.
A partir daqui, a questão que se deveria colocar a seguir seria: perante tanta oferta, qual a terapia que melhor se adequa à minha personalidade? Ou ao meu problema? Ou a ambos? Acontece que na hora “h”, quando o desespero aperta e a vontade de escapar ao sofrimento é mais do que muita, a prioridade segue no sentido do tal facilitismo. Queremos resolver issues imediatamente e apagar o sofrimento a todo o custo, e, óbvio, quanto mais depressa melhor. Até porque, convenhamos, quem é que gosta de sofrer? Mais: quem é que gosta de pagar para sofrer?
Quando o tema é sofrimento, ninguém tem grande interesse em aprofundá-lo — muito menos pagar para o fazer
Quando Joker (2019), o filme estrelado por Joaquin Phoenix, chegou ao grande ecrã, foram inúmeras as reacções de quem assistiu à película. Poucos dias após a estreia, lembro-me de ver no Facebook a publicação de alguém que, a propósito daquele filme, escrevia o seguinte: “Deprimente, negativo e violento! Às minhas amigas recomendo gastarem o tempo e dinheiro num copo de vinho tinto e não num filme assim.” Joker é um filme que incomoda, mas só o faz porque é real e cru, portanto, incomodativo — tanto quanto a vida pode ser.
No tema Ideologia, o artista brasileiro Cazuza (1958-1990) cantava que ia “pagar a conta do analista, pra nunca mais saber quem eu sou”. Carl Jung (1875-1961), psiquiatra e psicoterapeuta suíço responsável por fundar a psicologia analítica, defendia o seguinte: “Não há despertar de consciência sem dor. As pessoas farão de tudo, chegando aos limites do absurdo para evitar enfrentar a sua própria alma. Ninguém se torna iluminado por imaginar figuras de luz, mas sim por tornar consciente a escuridão. Porém, esse procedimento é desagradável, portanto, impopular.”
O que há, então, em comum entre a opinião daquela usuária do Facebook em relação ao filme Joker, a decisão do músico Cazuza em desistir do “analista” e a verdade de Jung? Há o medo. O medo de sofrer que tão bem caracteriza o ser-humano. Mais ainda: há a incapacidade deste lidar consigo mesmo, com as suas sombras e/ou angústias existenciais. Sim, quando o tema é sofrimento, ninguém tem grande interesse em aprofundá-lo — muito menos pagar para o fazer. E esta acaba por ser uma das razões pela qual tanta gente foge, como o diabo da cruz, da terapia pura e dura, em detrimento do mar de rosas que pode ser a cultura new age com todas as suas ofertas iluminadas.
Por estes motivos, é fundamental que antes que se tome a decisão de se fazer algum tipo de terapia, se tome consciência daquilo que se pretende obter com ela, tal como se de um investimento de vida se tratasse, que deve ser calculado e estudado com carinho máximo. Passemos então a entender as diferenças. Os terapeutas, sejam eles psicólogos ou conselheiros, possuem mestrado e doutorado variados e são licenciados pelo seu estado. Na psicoterapia, os profissionais licenciados concentram-se no longo prazo e trabalham em maneiras de compreender os seus pensamentos, humor e os comportamentos. Os life coaches, por outro lado, são incentivados a obter a certificação por meio de um programa credenciado como a International Coaching Federation (embora não seja obrigatório porque a profissão não é regulamentada). E, ao contrário dos terapeutas, não há requisitos de graduação. Os coaches de vida visam motivar, oferecer suporte emocional e criar confiança nos seus clientes. Em suma: a terapia, como é o caso da psicanálise, concentra-se no passado, enquanto o coaching centra as suas atenções no futuro.
Doa o que doer
A questão é que, muitas vezes, para se construir um futuro digno é importante, quando não é essencial, conhecer-se o passado com todas as suas nuances — doa o que doer. Tal como explanou o autor e psicólogo clínico Michael Bader, “compreender os significados inconscientes e as origens infantis do comportamento de um cliente não é necessariamente o meu foco, mas, francamente, quase sempre é extremamente útil para orientar o meu trabalho. Como poderia não ser? Quanto mais profundamente você compreender alguém, mais eficazmente poderá ajudar essa pessoa. Existe realmente algum debate sobre isso?”
Um artigo publicado pela American Counseling Association, que compara terapia e life coaching a meio-irmãos, elucida: muitos life coaches concentram-se em criar um novo caminho de vida para atingir objetivos, enquanto a terapia, às vezes, busca soluções emocionais para problemas passados a fim de seguir em frente. A terapia pode ajudar a lidar com as emoções causadas por problemas ou fatores estressantes, mesmo que eles não alterem drasticamente a vida ou sequer sejam traumáticos. De acordo com David Spiegel, Presidente Associado de Psiquiatria da Universidade de Stanford, qualquer pessoa deve estar aberta para buscar orientação profissional quando se trata da sua saúde emocional. “A terapia pode ser um laboratório interpessoal”, afirmou. “É uma forma de trabalhar a cognição, a emoção e as relações interpessoais de uma forma que o ajuda a gerir as suas emoções e a aprender a vê-las de uma perspectiva diferente.”
Não é, por isso, necessário passar-se por um grande evento na vida ou um trauma para se beneficiar da terapia. Falar com um profissional permite que se tenha uma noção de como parecemos aos olhos das outras pessoas, ajuda a obter feedback sobre tudo o que se está a sentir e oferece uma visão sobre como essas emoções estão a afetar a vida quotidiana. Assim como um life coach pode ajudar a formular um plano para se levar a cabo uma mudança significativa na vida, a terapia pode auxiliar no desenvolvimento de uma estratégia para se lidar com as dificuldades que se pode estar a enfrentar.
É importante saber em que mãos vamos pôr as nossas vidas
Outro dos fatores de distinção mais importantes entre psicoterapeutas e coaches é que os primeiros são formados para ajudar pessoas que enfrentam doenças mentais, e os segundos não. Na realidade, os primeiros podem estudar durante anos, enquanto para os segundos pode bastar um mês de estudo para que possam exercer a função de coach. Há dias recebi um e-mail de um curso de coaching cujo assunto diza: “Torne-se coach em apenas um mês” — acho que isto diz tudo. É que Rome wasn’t build in a day, portanto é importante saber em que mãos vamos pôr as nossas vidas: se nas de quem estudou anos a fio a mente humana, se naquelas de quem foi ali tirar um curso de coaching “e já volto”. Para oferecer psicoterapia legalmente, é necessário um diploma avançado e uma licença estadual para praticar. Para obter uma licença para praticar psicoterapia, é necessário atender a certos critérios que incluem um exame e um certo número de horas supervisionadas de prática.
Embora existam muitos programas de certificação para coaching, não existem conselhos administrativos para a vida ou coaches de sucesso. Os psicoterapeutas enfrentam assim mais restrições do que os coaches em termos de onde e como podem oferecer os seus serviços. Ainda acerca das diferenças entre a psicoterapia e o coaching, surge a questão das consultas. A psicoterapia acontece, tradicionalmente, face a face em um consultório — ou no divã se for o caso da psicanálise —, enquanto o coaching se desenrola, frequentemente, por telefone ou pela internet.
As diferenças citadas acima são generalizações e não se aplicam, naturalmente, a todos os psicoterapeutas e coaches. Como traçou Michael Bader, “a maior diferença entre coaching e terapia, a meu ver, é que a teoria que orienta o meu trabalho como terapeuta pode explicar como o coaching funciona ou não, enquanto as teorias que orientam os coaches não podem fazer o mesmo em relação à terapia. Essa diferença, embora verdadeira, parece irrelevante para mim. O que importa é que as pessoas recebam ajuda em seus esforços para crescer, dominar os seus problemas e se tornarem mais eficazes nas suas vidas. Ambas as abordagens objetivam fazer isso. Quem se importa (apesar dos conselhos de licenciamento) como você os chama?” Nas palavras de Jung, “quem olha para fora sonha, quem olha para dentro desperta”, seja esse trabalho feito a partir do divã de um consultório clínico, seja online, via um moderno vídeo a que se assiste a partir do conforto do lar.
Pureza Fleming nasceu em Lisboa, Portugal, há 39 anos. Uma obcecada por palavras, como boa geminiana que é, tem dedicado a sua vida às mesmas. Trabalhou como copywriter em agências de publicidade tais como BBDO Portugal e McCann Erickson. É, no entanto, pelo mundo das revistas que, ao longo da última década, tem espalhado as suas palavras. Já foi editora de moda e hoje escreve essencialmente sobre questões de comportamento e de sociedade — um world que a fascina. Atualmente divide a sua vida entre Búzios, Rio de Janeiro, e Lisboa
1 Comentários
Uma resposta para “Manual para quem busca a ‘plenitude’”
Só para complementar que existem outras abordagens psicoterapêuticas cuja base está no Aqui Agora e não no passado, como no caso da psicanálise, como a Gestalt Terapia e a Fenomenologia. Estas possuem uma base epistemológica humanista e não mecanicista como a TCC, por exemplo. A Psicologia é muito rica para falarem apenas da psicanálise.