Maternidade: entre a idealização e a desconstrução

Da criação do amor materno à hospitalização do parto, uma viagem no tempo pelo ato de parir e ser mãe

04.09.2018  |  Por: Vanessa Oliveira

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Maternidade: entre a idealização e a desconstrução

É comum as pessoas pensarem que a relação mãe-filho é centrada numa ligação de amor intenso, porém ela é uma construção social que tem se transformado ao longo do tempo. E, mais que isso, tem sido subjetivamente imposta por interesses econômicos de diferentes épocas. Assim, a noção de amor maternal, que pensamos ser instintiva, é relativamente recente dentro da história da civilização ocidental e foi baseada em um discurso médico-filosófico e político a partir do século XVIII. Isso, claro, no caso das mulheres brancas, porque, enquanto isso, as mulheres negras ainda eram escravizadas em diversos países e muitas eram apenas objetos de procriação.

Antes disso, o papel da mãe e de seus filhos equiparavam-se em importância: eram igualmente insignificantes, sendo o pai o proprietário de ambos. A criança tinha pouca relevância e a mortalidade infantil era alta. Foi após 1760, devido ao perigo de declínio populacional europeu, que se instalou um incentivo à maternidade. Foi então que o “amor materno” começou a ser exaltado e a criança teve pela primeira vez um papel mais importante na sociedade: o de garantir o crescimento populacional. Neste contexto, a mulher foi tida como a salvadora e seu poder de parir foi sacramentado.

Atualmente, o crescimento populacional não é mais necessário, mas ainda se mantém a glorificação da maternidade, como se fosse um ato pleno de felicidade, seguido pela lógica de que só seremos mulheres completas após a maternidade. E essa felicidade que nos mercantilizam é carregada de obrigações ocultas que muitas vezes fazem com que aquela mulher que era vista como profissional, estudante, amiga (etc.), passe a ser vista apenas como mãe. A que deve doar amor e cuidado e que deve ainda ter a capacidade de cumprir outros papéis como o de ser “pai” quando eles, os pais biológicos, abandonam seus filhos.

Dessa forma, aquela mulher que tinha diversos papéis sociais encontra-se sozinha como mãe e desesperada para conseguir cumprir de maneira perfeita todas essas obrigações que diariamente são reforçadas por familiares, amigos e conhecidos. E assim, junto com uma criança, nasce também, a solitude da mulher mãe.

E o que as mães pensam disso?

A partir desse histórico e das conjunturas atuais citadas acima, a ideia de uma iniciação científica me foi proposta. Ouvir de forma empática o que mulheres mães têm a falar sobre a relação delas com a maternidade e a saúde. Assim, nos propusemos a ouvir diversas mães que realizaram pré-natal e parto no SUS. Demos preferência às mulheres negras e periféricas, as principais vítimas dessa lógica social.

Na fala delas fica claro que o tratamento dentro da rede pública de saúde está longe de ser o ideal, entretanto, muitos avanços foram conquistados, como a instalação do parto humanizado e o incentivo ao parto vaginal. A expectativa é que uma mudança maior aconteça, pois cartilhas e metas foram instauradas pelo Ministério da Saúde para incentivar a humanização do tratamento às mães e seus filhos nesse período. Todavia, teoria não é prática, e por isso os profissionais da saúde precisam entender suas responsabilidades. Exercitando o ato de ouvir os relatos e as vivências delas. O SUS tem uma filosofia respeitada mundialmente, mas nós profissionais devemos nos dispor a entender de forma mais próxima e amorosa o que elas sentem.

Escutar nos leva a repensar tanto o que foi bom quanto o que foi frustrante nessas vivências maternas. Lidar com o ser humano exige constante aperfeiçoamento, a humanização deve ser sempre reciclada para que o olhar compreensivo seja renovado dia a dia.

Nesses relatos há uma enorme diversidade de experiências, algumas incríveis, outras terríveis, e também há aquelas que vivenciaram os dois e claro, o grupo das indiferentes.

O que precisamos escutar

Algumas relatam, por exemplo, que os médicos atendiam apenas suas barrigas ou que fizeram o uso de cadeira de rodas sem necessidade, dando a impressão de doença ou algo errado. Há aquelas que amaram a primeira consulta e que durante o pré-natal foram conquistadas pela vontade do parto normal. Muitas falam sobre como era importante perceber a boa relação dos médicos e médicas com a enfermagem. Há em tantas delas a sensação de que o parto não foi correto, as que não entendem por que foram anestesiadas, e há as que levaram bronca do anestesista por se moverem. Mas muitas dizem não ter recebido orientação sobre como ficar durante a anestesia, apenas a ameaça de tetraplegia por terem se movido. Mostrando assim uma falta de diálogo, de troca.

Há as que durante o puerpério receberam suas médicas e enfermeiras em casa e agradecem até hoje por isso. Há também relatos sobre um tratamento harmonioso e quase perfeito de todos os profissionais na hora do trabalho de parto e parto. Existem depoimentos que relatam amor em cada ação, em cada olhar, mesmo com a nítida simplicidade de insumos.

Não por acaso, as doulas são as profissionais mais elogiadas. Cada toque e cada palavra foram sentidos como a personificação do amor. Ninguém conseguia fazer o que as doulas faziam. Tudo isso mostra como o cenário muda quando muda o profissional envolvido e deixa mais evidente a importância de nos envolvermos, cada um de nós, na mudança que queremos no atendimento público.

Já no puerpério, os relatos dão conta de um certo abandono. O bebê necessita de muito amor e muito cuidado, e a mãe acaba por ficar em segundo plano. Há as mães que adoram o alojamento em conjunto e agradecem por não tirarem o bebê de perto delas. E as que relatam um tratamento extremamente grosseiro por parte dos profissionais.

E há, claro, muitas mães que dizem ter tido uma experiência “o.k.”, longe daquela dos sonhos. E essa é uma informação importante porque mostra como a mídia e a sociedade nos vende esse processo de uma forma idealizada. E por que os mesmos que falam que a maternidade é linda são também os que tiram beleza e poesia deste momento? É claro que engravidar e parir é uma caixinha de surpresas e cada mulher tem seu processo. A experiência fisiológica pode ser incrível mesmo em meio a profissionais desumanos e uma experiência frustrante e dolorosa pode acontecer mesmo em um meio acolhedor. Entretanto, independente da resposta fisiológica dessas mulheres, o respeito e a empatia devem estar presentes como ações obrigatórias de todos os profissionais envolvidos.

Juntando a parte histórica lá de cima com os depoimentos, posso afirmar com certeza que esses processos desumanos se devem, em grande parte, a uma patologização e medicalização de algo natural que é o ato de parir. A gravidez, o parto e o puerpério, que no passado foram tidos como particulares, algo caseiro e que ficavam sob os cuidados de outras mulheres, se tornou hospitalocêntrico e medicocêntrico. E isso é sim um problema. É por isso que as doulas têm um papel tão fundamental, elas têm a capacidade de trazer o foco desse momento de volta para a  mãe.

É preciso lembrar aos que compõem esse mecanismo moderno e mercantil que a mulher tem o poder de realizar tudo isso sozinha, que a maioria de nós nasce com essa capacidade, nosso corpo é adaptado a isso. Claro que não estou negando o papel da medicina e seus avanços, mas é preciso que se entenda os limites de cada situação e que cada um saiba o que está fazendo ali, sempre tendo a noção de que o foco é a mãe como pessoa e não como portadora de uma doença que possui vida.

Vanessa Oliveira é estudante de medicina na PUC-SP. Sonha com um sistema de saúde cada vez mais humanizado e realiza uma iniciação científica sobre mulheres mães e suas expectativas em relação ao cuidado na saúde

1 Comentários

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Uma resposta para “Maternidade: entre a idealização e a desconstrução”

  1. Maira Di Natale Ribeiro disse:

    Cuidado ao afirmar que o vinculo mãe-filho é uma construção social e que é datado o incentivo ao crescimento populacional. Faz parte da premissa básica da vida de qualquer espécie o instinto de sobrevivência, e com isso os mamiferos, principalmente, desenvolveram um vinculo de cuidado e pode-se ate dizer de afeto ou amor entre mãe e filhote.

    Outro tópico onde se é delicado afirmar paradigmas é sobre os papeis sociais das mulheres, aí sim é uma construção social e datada, com a revolução industrial as mulheres foram incentivadas/forçadas a delegar os cuidados de seus filhos para estarem na fábrica. O que muitas vezes gerou infelicidades profundas.
    Ser apenas mãe por um periodo é uma informação contida no nosso DNA e isso não pode ser tratado como menor, ou inferior. Cabe a cada mulher ter possibilidade de escolher o que lhe apraz. Porém lembrando sempre da ideologia capitalista imposta que mercantiliza a felicidade e a alienação dos papeis sociais.

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