Mentira: use com moderação

Mentira de mãe, mentira de chefe, mentira de namorado. Inverdades fazem parte da vida, mas se acostumar a inventar narrativas pode causar dependência, danos morais e estilhaço de caráter

04.12.2020  |  Por: Lia Bock

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Mentira: use com moderação

Todo mundo mente, isso é fato. Mentimos para facilitar a vida, mentimos para nós mesmos e mentimos porque a verdade dói. Mas, algumas pessoas mentem mais, eu diria até, que ficam entorpecidas pela névoa da mentira e não conseguem nunca mais sair desse lugar onde a verdade é apenas uma possibilidade.

São pessoas que, por algum motivo enigmático, acham que a mentira tornará a vida mais simples. Sempre. Desde a semi-inofensiva mentira materna pra calar momentaneamente as crianças (“eu compro chiclete na volta”, tendo total consciência de que no horário de retorno a padaria estará fechada). Até as mentiras que quebram caráteres. Tipo o cara que traiu a namorada, foi pego no zap e, mesmo sob todas as evidências, nega, mente e inventa uma história cabulosa porque, um dia, algum deturpado disse pra ele: “amigo, nega até o fim”. Que erro.

A mentira pode salvar a nossa pele em alguns momentos, mas é preciso ter em mente que ela faz dos nossos interlocutores pessoas inseguras e altamente desconfiadas. Mentiras criam dinâmicas tóxicas e ambientes tensos. Mentiras podem quebrar a confiança e essa vale muito mais do que o casamento ou do que um desentendimento momentâneo.

Uma das mentiras mais loucas que eu já vi, foi o sujeito que assumiu ter ficado com a melhor amiga da ex porque a atual mulher botou ele na parede. Não demorou pra história circular e a amiga em questão dizer que nunca tinha beijado aquele sujeito. Enfurecida, foi tirar satisfação. A reposta: “cara, ela encheu tanto o meu saco com isso que eu disse que tinha ficado”. Hem? Reparem: o sujeito não mediu a consequência daquela confirmação falsa no meio de uma briga na madrugada e, para dar um fim logo naquilo, botou a ex e a amiga dela na roda como se isso não fosse custar nada. Quase acabou com a amizade e ainda criou uma anedota que rodou o bairro e veio parar neste texto. Me lembra aquele conto do Luís Fernando Veríssimo em que a aliança do sujeito cai no bueiro e como a mulher jamais acreditaria nessa história, ele diz que deixou no motel quando saiu com a amante. Rir pra não chorar, né? Esse é o típico caso em que mentiu pra facilitar e acabou complicando. O que não é raro no reino das inverdades.

Mas não são só os puladores de cerca (e seus afluentes) que mentem. Tem gente que mente na hora de mandar um funcionário embora, por exemplo. Ao invés de dar a real para que o profissional tome tento a e tenha chance de ser uma pessoa melhor, chefes e patrões preferem sair pela tangente. Me lembra aquele velho e péssimo “o problema não é você, sou eu”, de quem não tem criatividade e nem sinceridade na hora de terminar a relação amorosa. Mas voltando às demissões: pessoas chega atrasada? Não sai das redes sociais? Não entrega um trabalho bem feito? Não sabe trabalhar em equipe? Está fazendo intriga na firma? Ou simplesmente vendeu que sabia fazer algo, mas não está entregando? Faça um favor para a humanidade: diga a verdade. Já vi gente inventar desculpas mirabolantes para não ter que olhar na cara do sujeito e dizer “não estamos felizes com você, não deu certo. Sinto muito”.

A desculpa é sempre a mesma, seja o namorado ou chefe de plantão: dizer a verdade dá trabalho, dizer a verdade incomoda, dizer a verdade dói. Mas puxa, será que a dor não faz parte de alguns processos? Sangrar às vezes é inevitável. A mentira cria uma leveza falsa, que pode durar pouco ou pior, se desenrolar um novelo muito mais complexo e com efeitos muito mais duradouros e engripados.

E ainda há um componente muito importante: mentir vicia. A gente vai se acostumando ao conforto de nunca bater de frente, de nunca pisar no chão frio ou espinhoso, de nunca sofrer e assim, vai querendo sempre e cada vez mais se afastar desses lugares. Quando vê, a pessoa está mentindo por motivos torpes e em situações absolutamente desnecessárias.

E quando a pessoa vicia, rapidinho está mentindo coisas absolutamente desnecessárias, inclusive em situações sociais só para dar uma cobertura mais saborosa para uma história ou se sentir parte de um grupo. Uma tentativa de assalto que nunca existiu, um acidente de carro que foi bem menos grave do que as palavras que o descreveram, uma viagem cagada que se transforma na melhor trip dos últimos tempos. Coisas que, aparentemente, não ferem ninguém (a não ser a credibilidade do mitômano em questão) vão se misturando com coisas sérias e mentiras que implicam outras pessoas. Gente casada que se passa por solteira, gente sem experiência num assunto que se passa por expert e todos aqueles que, para não ter que lidar com um problema específico agora, criam dois ou três pra ali adiante.

Uma coisa engraçada dos mitômanos é o fato de que eles muitas vezes se desorganizam em suas narrativas múltiplas. Sim, porque uma coisa é você mentir uma história específica por um motivo claro e se apegar a ela como se fosse verdade e, outra, totalmente diferente, é você mentir tanto que já não sabe qual é a verdade e o que você disse pra quem. Sabe como? Sujeito (ou sujeita) está tão habituado a inventar histórias que sai falando o que mais convém naquele instante, esquecendo, assim, que as outras pessoas se comunicam, que as histórias circulam e que querência é bom até na desonestidade.

Neste ponto alguns podem ponderar: mas algumas mentiras podem ser melhores do que suas respectivas verdades. Olha, há controvérsias, mas não sejamos hipócritas, algumas mentiras podem, de fato, ajudar a proteger pessoas mais sensíveis de situações grotescas. No meu caso, elas estão mais ligadas à omissões. “Você sabe porque a fulana não está falando comigo?”. Vou eu me meter em confusão dos outros? “Sei, não!”. Existem também aquelas mentiras que a gente conta porque não tem coragem de dizer a verdade. Na maiorias das vezes são mentiras carregadas de culpa. Vocês assistiram a série I May Destroy You, da Michaela Coel? Por se sentirem culpados, os amigos mentem. E sim, ele têm uma certa culpa, mas não, eles não são os criminosos (sem mais spoiler). Típica mentira para evitar que uma enorme dor se torne uma dor maior ainda. Não julgo, mas espero imensamente que a maioria de nós fizesse diferente.

Tudo isso pra dizer que não estou aqui para fazer às vezes de bastião da verdade e sim pra perguntar por que (porque, meu Deus?!) algumas pessoas mentem tanto e pra deixar aquele salve pra quem se reconheceu nos exemplos citados aqui.

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