Minha espiritualidade feminina não passa pelo catolicismo

Divagações do último domingo de Páscoa, quando em vez do tradicional almoço estive na casa de pescadores que serve como local de devoção a Iemanjá, em Salvador

24.04.2019  |  Por: Gaia Passarelli

image
Minha espiritualidade feminina não passa pelo catolicismo

Você já notou que, na Igreja Católica, apenas homens ocupam o mais alto posto de liderança política e espiritual? Que, Papisa Joana à parte, todos os Papas e demais membros do alto escalão do Vaticano são invariavelmente homens e isso tem, o que, uns dois mil anos? Para a Santa Sé as mulheres podem ser santas e sagradas, verdade, não faltam exemplos. A mãe de Jesus, Maria, é assunto de diferentes cultos e templos mundo afora, como a nossa Basílica de Nossa Senhora de Aparecida do Norte e a Notre Dame (Nossa Dama) de Paris.

Mas ela tem uma característica peculiar que a coloca acima de todas as outras mulheres: é virgem. É o ápice do cristianismo carola e machista, justificado pelo milagre da geração espontânea divina: a mulher é mãe sem passar pelo sexo. Essa mulher, divina, santa, imaculada, é digna de figurar em catedrais, sempre ao lado esquerdo do altar principal e sempre chorando pelo filho morto – a Pietá, presente em igrejas mundo afora e imortalizada na obra-prima de Michelangelo no Vaticano. Em alguns cultos, ainda, ela é o Espírito Santo, abaixo do pai e ao lado do filho. Note que o sinal da cruz não diz “mãe”.

A Igreja Católica é um dos maiores e mais bem-sucedidos instrumentos de controle do homem sobre a mulher na história do mundo. Não é o único, claro. Incas, maias e astecas não eram especialmente amigos da figura feminina de poder. Pelo menos até onde nós sabemos, os principais sacerdotes e líderes das grandes civilizações antigas nas Américas eram sempre homens – ou pelo menos assim os invasores europeus e cristãos interpretaram, já que os registros que temos vêm daí. O judaísmo histórico não dá qualquer protagonismo às mulheres e, apesar de hoje haver algumas poucas mulheres rabinas, a figura principal de sabedoria da religião ainda é o rabino homem. O islamismo tem ramificações ultra-radicais que cerceiam toda e qualquer liberdade feminina em nome da sua “proteção”, proibindo inclusive que meninas estudem, quanto mais se tornarem sábias. Já sociedades mongóis, chinesas e japonesas tinham khans e imperadores com esposas oficiais e consortes.

Onde, na História, estão as mulheres com posição de poder espiritual?

Na umbanda, religião brasileira, todo masculino tem equivalente feminino e vice-versa. A entidade máxima da religião é Olorum, equivalente a Deus como ser perfeito, que dá ao mundo sete irradiações, ou tronos, representados por deuses e deusas vindos do candomblé. Cada um desses tem uma regente feminina e um regente masculino: Oxalá e Oyátempo, Oxóssi e Obá, Xangô e Iansã, e por aí afora, sendo que também são ligados a ambientes e fenômenos da natureza (florestas, ventos). Essa dualidade natural aparece ainda quando falamos das entidades de trabalho, espíritos que nos aconselham quando (e se) consultados. Esses guias também se apresentam como femininos ou masculinos: são Exús e Pombagiras, Caboclos e Caboclas, Pretos-Velhos e Pretas-Velhas, Ciganas e Ciganos. Também é totalmente possível uma pessoa que se identifica como homem incorporar uma entidade mulher. E o grau máximo de liderança dentro da religião pode ser ocupado por mulheres e homens: mães e pais de santo da umbanda têm a mesma importância e impõem sabedoria e respeito.

Qual é a pira da espiritualidade católico-cristã, que ainda hoje subjuga o papel feminino à condição de coadjuvante?

No candomblé, religião afro-brasileira que tem diferentes tradições sempre ligadas à ancestralidade (ketu, banto, jejê e outros), Orixás e Yabás são deuses e deusas de seus domínios e trazem características humanas – ou nós temos as características deles, dependendo do ponto de vista. Orixás podem ser sábios e amorosos, ou ciumentos e raivosos, e suas demandas ditam nossos comportamentos em terra. Os livros e registros do candomblé no Brasil dão enorme destaque ao papel das mães de santo e filhas de santo, justificando que as mulheres são maioria nos templos e cultos. Não por acaso, na casa-museu de Jorge Amado, no bairro do Rio Vermelho em Salvador, o escritor (ferrenho defensor e divulgador da religiosidade afro no Brasil e criador da primeira lei contra intolerância religiosa brasileira, de 1946) aparece em vídeos e fotos ao lado de lideranças do candomblé brasileiro: todas mulheres.

Isso para ficar só nos dois exemplos mais conhecidos. Outras religiões e cultos do Brasil, como a Jurema Sagrada do Nordeste ou correntes do espiritismo, têm presenças femininas e masculinas em igualdade de participação e importância.

É totalmente possível buscar exemplos fora da nossa proximidade geográfica também. Curandeiras e sacerdotisas estão nos registros da espiritualidade dos povos indígenas da América do Norte. Nas religiões pagãs pré-cristãs da Europa, o culto à natureza é sempre ligado ao divino feminino, tendo o masculino como consorte-participante. E os povos do norte da Europa tinham guerreiras em suas formações militares, mulheres comandantes em suas tribos e deusas em suas mitologias.

Qual é a pira da espiritualidade católico-cristã, que deveria ser baseada em ensinamentos de amor e igualdade, mas ainda hoje subjuga o papel feminino à condição de coadjuvante? Isso em seus melhores momentos, porque nos piores a mulher é a raiz de todo o mal no mundo.

E principalmente, qual é a nossa desculpa para seguir com isso no mundo hoje?

Na próxima vez que alguém gritar “Deus acima de tudo” na sua orelha, tente trocar por deusa. Melhor ainda se for a sua própria e interior, uma deusa que você escolheu.

 

Gaía Passarelli é jornalista e escritora, autora de Mas Você Vai Sozinha? (Globo Livros, 2016). Nascida e criada em São Paulo, mora num prédio velho da Bela Vista com o filho, três gatos e uma crescente coleção de guias de viagem. Você a encontra no twitter @gaiapassarelli e no site gaiapassarelli.com

0 Comentários

Comentar

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *

Deixe uma resposta

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *