Minha família quilombola
Os quilombos resistiram à escravidão e hoje resistem à especulação e ao roubo de suas terras. Esta é a história do lugar de onde eu vim
20.08.2018 | Por: Thais Prado
Intervenção nas fotos de Colin Brown e Amanda Canhestro / PNSR UFMG
Se você acha que quilombo é algo para ser definido no passado, um refúgio de escravos africanos, este texto é pra você. Aqui vou falar do Quilombo da Caçandoca, onde minha família vive. Mas saiba, as chamadas comunidades remanescentes de quilombos existem em todos os estados brasileiros, e São Paulo, mais especificamente no litoral norte, em Ubatuba, é um deles.
Mas voltemos às origens rapidamente: os quilombos foram constituídos por negros trazidos da África como escravos. Aqueles que conseguiam fugir viam ali, no meio da mata, uma chance de vida. E, assim, essas comunidades foram se estruturando. Escondidas e independentes.
Como estudamos na escola, o mais emblemático dos quilombos formados no período colonial foi o Quilombo dos Palmares. Palmares existiu por mais de um século, e se transformou em símbolo da resistência do africano à escravatura. Como vocês verão abaixo, ainda hoje ser quilombola é ser resistência.
No século XIX, onde existe ainda hoje o Quilombo da Caçandoca, havia uma fazenda cafeicultora e escravagista, que em 1858 foi adquirida por José Antunes de Sá. Ela abrangia as localidades de Praia do Pulso, Caçandoca e Caçandoquinha, Bairro Alto, Saco da Raposa, São Lourenço, Saco do Morcego, Saco da Banana e Praia do Simão. E o fazendeiro por anos aproveitou a localização afastada e rodeada pelo mar para trazer negros da África e explorá-los.
José de Sá teve três filhos e concedeu a cada um uma parte da fazenda e um grupo de escravos. Na época, tanto o fazendeiro como seus herdeiros tiveram filhos com mulheres escravizadas. O mais comum era logo após o nascimento vendê-los.
Em 1888, com a abolição da escravatura, alguns ex-escravizados foram embora, enquanto outros permaneceram como posseiros, donos do seu próprio trabalho. Ficaram também os poucos filhos e netos de José Antunes de Sá reconhecidos como legítimos. A comunidade foi sendo formada a partir de três núcleos familiares: filhos e netos de José de Sá e descendentes de dois escravizados, Gabriel de Oliveira dos Santos e Rosária Vitória. Nascendo, ali, os chamados “Gabrieis”.
Minhas raízes
Dos Gabrieis nasceu minha avó, Izaltina Cesário dos Santos, neta de ex-escravos, que mais tarde se casou com Pedro Cesário dos Santos, filho do escravocrata que era “dono” do meu bisavô. Veja só. Segundo conta o meu avô a confusão foi grande quando decidiram se casar, mais foram e são felizes até hoje. E ali permaneceram, construíram pequenas casas de pau a pique, cultivando cana de açúcar, banana e mandioca. Foi ali que nasceu meu pai e foi assim que viveram até 1974, quando as ruínas da casa grande foram demolidas e houve a ampliação da BR-101. Com isso veio a especulação imobiliária e a necessidade (mais que questionável) de várias famílias abandonarem suas terras.
As pessoas recebiam prazo de uma semana para se mudarem, eram então expulsas e suas casas imediatamente queimadas. Naquele ano, uma empresa da área imobiliária se apropriou de 414 hectares na praia e no sertão da Caçandoca, mantendo a área rigorosamente cercada e vigiada, mesmo sem construir nada no local.
O registro mais antigo da escritura apresentada pela empresa é referente à aquisição de uma área de 210 hectares conhecida como Fazenda Maranduba, primeiro por um casal, em 1928, e mais tarde pela Empresa Territorial Agrícola Maranduba, em 1941. Por fim, em 1976, um agente imobiliário teria comprado a fazenda, responsabilizando-se pela retirada completa dos habitantes tradicionais da área. No mesmo dia, ele a vendeu para a empresa imobiliária. Mesmo sem nenhum documento referente à Caçandoca, entre 1974 e 1985 a empresa destruiu o que havia ali e proibiu a permanência de ranchos para barcos nas praias da Caçandoca e Caçandoquinha, impedindo, assim, a pesca dos quilombolas. Também bloqueou a passagem de automóveis entre o condomínio e a praia, prejudicando o transporte de mercadorias e de pessoas doentes.
Esse foi um dos períodos mais difíceis para quem vive na Caçandoca, houve muita luta até que conseguissem provar que a terra era deles por direito.
Na década de 1980, membros da comunidade começaram a enviar cartas pedindo ajuda ao prefeito de Ubatuba. Em nome da história do povoado denunciaram a invasão de suas terras pela empresa, citando as arbitrariedades cometidas por seus capangas. Enviaram também cartas ao governador e a um deputado estadual, pedindo que intercedessem. Pediram, ainda, a presença da polícia com urgência no local. Além disso, começaram a pesquisar a respeito de seus direitos e a reunir documentos comprovando sua condição de herdeiros legítimos.
Desde então, houve muitos processos judiciais, ocorrências policiais e recursos administrativos envolvendo o território da Caçandoca. O recurso da reintegração de posse foi usado várias vezes contra os quilombolas. Quase sempre, os apelos dos membros da comunidade foram julgados improcedentes ou simplesmente desconsiderados. Mesmo assim, uma grande parte do grupo continuou mobilizada, informando-se cada vez mais sobre seus direitos. Porque se os quilombos resistiram à escravidão, poderiam resistir à especulação e ao roubo de suas terras.
Em 1997, ocuparam uma parte da área reivindicada que estava sob domínio da empresa do ramo imobiliário. Em 1998, porém, a empresa entrou com uma ação de reintegração de posse e ganhou uma liminar que obrigou os quilombolas a abandonarem o local. Neste mesmo ano, foi fundada a Associação da Comunidade dos Remanescentes do Quilombo da Caçandoca. Através dela, entraram em contato com a Fundação Instituto de Terras do Estado de São Paulo (Itesp), que deu início ao processo de regularização fundiária da área requerida.
Essa foi a primeira desapropriação por interesse social que beneficiou uma comunidade de quilombo no país. Atualmente a comunidade está na posse de 410 dos 890 hectares e quando o processo judicial for concluído, a área será titulada em nome da associação.
Precariedade e isolamento
Passados mais de 40 anos a luta continua, as famílias cresceram, e o acesso à escola ainda é precário. Na Caçandoca existe uma escola mas não tem professor, então ela segue fechada. Até o ano de 2016 as crianças andavam por mais de 40 minutos para chegar à BR-101 e conseguir pegar uma condução até a escola mais próxima. Fiz essa caminhada muitas vezes para visitar meus avós e tios. Hoje há um ônibus que faz esse percurso, porém como a estrada é precária e de terra, se chove, o ônibus não chega até as crianças. Agora a caminhada é de apenas 20 minutos.
O acesso à região ainda é limitado pela imobiliária que segue construindo e vendendo lindas casas à beira-mar e cercadas de segurança. Ali, claro, as ruas são de paralelepípedos e a circulação de seus moradores é simples, bem diferente da dos vizinhos quilombolas. Que, aliás, devido ao lobby e à perseguição, estão proibidos de construir, plantar, desmatar ou fazer qualquer tipo de intervenção além da já feita. Muitos já foram multados e sentem falta de poder se alimentar daquilo que produzem sem precisar recorrer aos mercados.
A fonte de renda dos moradores vem da pesca e boa parte por meio das mulheres, que praticam artesanato e trabalham em barracas na praia, onde também vendem comidas típicas da região.
Por falta de recursos, muitas das mulheres são forçadas pelas circunstâncias a trabalhar como domésticas, cozinheiras e babás nos casarões vizinhos. Apesar da resistência das matriarcas da comunidade, que lutam para que “os deles” não se sujeitem a trabalhar para os brancos que roubaram suas terras.
A Praia do Pulso, principal local de pesca, é hoje uma espécie de praia particular dos casarões. Ali, só entra quem se identificar como morador ou visitante autorizado. Nesta praia vemos as lanchas e jet-skis dos moradores.
Meu pai saiu do quilombo já adulto, dada a dificuldade de achar trabalho e se locomover. Foi para o Guarujá, onde conheceu a minha mãe, e mora lá até hoje. Alguns de seus irmãos seguem no quilombo, mas por necessidade todos são envolvidos nas questões políticas e sociais da região.
Enquanto aguardam providências dos governos federal e estadual para finalizar a regularização de suas terras, os moradores do quilombo Caçandoca segue passando sua história e cultura para os mais novos. Porque contar a história também é resistir. E é preciso muita força para ser referência de luta e uma raiz viva e forte do que resta de nós.
Thais Prado é estudante de jornalismo, a única negra da sala e primeira pessoa da família a entrar em uma universidade. Filha e neta de quilombolas, segue na luta para não não deixar suas raízes morrerem
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