Morrer sozinha, por que não?

Pra que serve o casamento e qual o preço que estamos dispostas a pagar por ele? Um mergulho em conceitos contemporâneos sobre relacionamentos

30.10.2019  |  Por: Maria Clara Drummond

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Morrer sozinha, por que não?

Há uma imagem clássica que ilustra muito bem o medo feminino da solteirice eterna: a mulher que morre sozinha no apartamento e tem seu corpo devorado por gatos. Afinal, se é solteira, é sozinha, não é amada, ninguém nota sua falta, até o corpo começar a decompor, e o cheiro incomodar os vizinhos. É, ao mesmo tempo, uma lenda urbana cômica e cruel. No entanto, nos últimos anos, esse pensamento está começando a mudar.

“O casamento, a não ser que seja com um homem excepcional, é frequentemente um mau negócio para as mulheres”, diz a escritora americana Linda Hirshman. Para ela, o casamento apresenta apenas duas opções para a mulher, ambas ruins: sacrificar sua carreira e autonomia enquanto torna-se cada vez mais financeiramente dependente do homem, ou continuar trabalhando e acumular uma segunda função com o trabalho doméstico. Afinal, sabemos que mesmo entre os mais jovens, atualizados com as demandas feministas atuais, as mulheres continuam majoritariamente responsáveis pelos cuidados da casa.

Seu argumento encontra eco na filosofia da italiana Silvia Federici, que recentemente esteve no Brasil para lançar seu livro “O Ponto Zero da Revolução: Trabalho Doméstico, Reprodução e Luta Feminista” (Editora Elefante, 2019). “O que eles chamam de amor, nós chamamos de trabalho não-remunerado”, decreta ela, em recente entrevista para a Folha de São Paulo. “Há uma grande diferença entre fazer cadeiras, sapatos e carros, e fazer e criar crianças. Com a desvalorização do trabalho doméstico, a mulher precisa arrumar outro emprego, ou depender do homem. Os homens são explorados pelo mercado de trabalho, mas ao menos eles têm alguns direitos. Nós cuidamos das roupas, comida, sexo e trabalho emocional. Muitas mulheres casadas fazem sexo sem vontade porque os maridos desejam. E mentem que tiveram orgasmos para agradá-los”, disserta.

Vivenciar um casamento ruim é muito pior que morrer sozinha

Para Kili Goff, jornalista do The Guardian, a recusa de participar dessa jornada de trabalho extra ajuda a explicar o fenômeno dos  incels (homens que se dizem involuntariamente celibatários, como alguns assassinos de massa dos últimos anos, tipo Elliot Rodger): “As mulheres têm mais liberdade e poder econômico para estabelecer critérios mais rigorosos em relação aos homens. Mais mulheres chegaram à conclusão de que vivenciar um casamento ruim ou dividir criação dos filhos com um homem irresponsável é muito pior que morrer sozinha. E, uma vez que morrer sozinha não é mais assustador, os homens perdem o poder.”

O Twitter da sexóloga Regina Navarro Lins é cheio de ótimos insights sobre o assunto: “A busca de autonomia não significa incapacidade de permanecer numa relação a dois, mas sim a recusa de pagar qualquer preço por ela.” O comediante Chris Rock chegou a brincar que as pessoas somente se mantinham casadas para não irem ao cinema sozinhas. É uma piada com um fundo de verdade. Talvez o principal medo seja do olhar externo que acusa: aquela mulher está sozinha.

Hoje, sabemos que o casamento é mais benéfico aos homens que às mulheres, embora ainda tentem nos convencer do contrário. Há, portanto, um vão entre o que ainda está embutido no nosso inconsciente, e o que, aos poucos, vamos aprendendo, tanto na experiência empírica quanto através de estudos e pesquisas (por exemplo, mulheres solteiras são mais felizes, saudáveis, e fazem sexo com mais qualidade do que aquelas casadas e com filhos). Na prática, sabemos que companheirismo não precisa estar vinculado a laços familiares. E, no entanto, sucumbimos à narrativa hegemônica que nos foi imposta.

Meu desejo de princesa é que cada vez mais mulheres percebam aquilo que escreve Regina Navarro Lins: “Quando alguém descobre o prazer de estar sozinho, percebendo as próprias singularidades, se dá conta de uma profunda mudança interna.”

 

Maria Clara Drummond é jornalista e escritora, autora dos romances A Realidade Devia Ser Proibida (editora Companhia das Letas, 2016) e A Festa É Minha e Eu Choro Se Eu Quiser (editora Guarda Chuva, 2013)

1 Comentários

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Uma resposta para “Morrer sozinha, por que não?”

  1. Daniela disse:

    Verdade! Eu saí de um casamento de 9 anos mais pobre e desiludida,mas foi um intensivo sobre assumir a dianteira sobre o que me interessa, sem delegar! Lamento a educação q eu tive de q os homens “sempre sabem o q é melhor pra vc”

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