Naira Mattia e a beleza do que não é óbvio

O trabalho da jovem fotógrafa é potente e melancólico, alegre e lânguido e por isso consegue abraçar diversas questões contemporâneas

25.11.2019  |  Por: Mari Cobra

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Naira Mattia e a beleza do que não é óbvio

O trabalho da Naira Mattia tem extrema elegância nas composições. Suas cores, formas e luzes causam um misto de prazer e estranheza. Naiara se formou em publicidade pela Universidade de São Paulo, foi ali que teve contato com as possibilidades de desenvolvimento de uma linguagem tanto visual quanto semiótica. Desde então, atua em duas frentes: a autoral, desconstruindo formas e corpos em experimentações estéticas, e profissional, construindo narrativas no universo digital. Vale a pena conferir seu trabalho e adentrar suas palavras que são pura inspiração.

Como você começou a fotografar?
Cheguei na fotografia pelo desenho. Era uma adolescente bem solitária, então passava horas e horas do meu dia desenhando e procurando referências. Foi assim que comecei a acompanhar o trabalho de algumas fotógrafas pela internet e pesquisar também sobre câmeras e processo fotográfico. Fui pegar uma câmera na mão só anos depois, já com 19 e fazendo faculdade em São Paulo. Por ser do interior, até então tive dificuldade de acesso a cursos, informação ou equipamentos. Era tudo pela internet, que eu só usava de fim de semana. Então ia a sebos, lia guias técnicos de fotografia e fazia alguns testes com uma analógica do meu pai. Sempre fui muito ligada ao retrato, a cores e história da arte. Em casa a gente tinha a pressão de ser muito bom em tudo que fazia, então era muito focada na escola e o que havia pra estudar sobre arte e literatura era praticamente meu momento de descanso.

Como a família viu esse movimento para o mundo das artes?
Meu pai queria que eu fosse médica, como as minhas irmãs. Mas tem o lado bom: me deu um senso de competição forte, de ter que me provar em tudo. Sei que pode ser um aspecto negativo de personalidade, mas fez com que eu trabalhasse na fotografia com um senso de superação que me ajuda a não descansar.

Como é seu processo criativo?
Pra mim é tudo muito intuitivo e pouco planejado. Os temas têm a ver com a minha vida e também com um diálogo interno entre as referências que ando vendo, as tentativas de trabalhos autorais e meus trabalhos comissionados. São testes e falhas. Faço algo, se não dá certo, transformo em uma outra coisa e muitas vezes essa outra coisa vira um novo trabalho! É uma metodologia sem muita descrição de método e sem fim específico, sabe como? No geral, vejo a foto como uma busca por harmonia — em poses, linhas e cores. Uma pessoa tem uma harmonia interna. Uma paisagem é passível de harmonia. Então só clico quando penso que a foto que tá na minha frente não poderia ser outra. Por ser muito simples, passei anos vendo esse processo com extrema autocrítica, como insuficiente. Hoje, entendo que aceitá-lo me ajuda a continuar produzindo.

O que é importante pra você na sua fotografia?
Como eu disse, em primeiro vem a harmonia, que vista de um jeito específico, pode ser como um grande alívio. A sensação que dá depois de limpar um espaço, organizar objetos. Aquele silêncio por onde a energia flui. É o que eu sinto quando clico, trato imagens e edito portfólio. Também acho muito importante o conteúdo por baixo da estética. O que eu tô dizendo sobre o personagem retratado? Sobre a paisagem? Sobre o encaixe das linhas? Odiaria prejudicar alguém, me apropriar de algum corpo ou da minha linguagem pra obter algum tipo de vantagem.

Fala sobre essa vantagem que seria possível obter.
Não podemos negar que a fotografia é uma ferramenta com histórico de dominação. É um discurso de representação, um olhar sobre o outro, e tradicionalmente ocidental e masculino. Por exemplo, demorei anos pra deixar de sentir desconforto ao clicar um nu, sem entender o porquê. Melhorou quando entendi qual tipo de nu gostaria de clicar. Hoje entendo que esse desconforto é parte de uma dívida histórica, uma conta a se pagar: não dá pra produzir imagens sem entender o que está sendo dito. É um peso, mas também um guia importantíssimo de tudo o que eu vier a produzir.

Quais suas fotógrafas favoritas?
Existem algumas fotógrafas cujo trabalho sempre revisito. A primeira que conheci foi Francesca Woodman, e nunca deixei de voltar pra ela. Tenho também sensações muito fortes com os retratos da Vivian Maier, apesar de ter sido desconhecida em vida, o que é chocante de se pensar por conta do talento, acredito que ela dá um pau no Robert Frank. Das contemporâneas, que acompanho no Instagram, Rosanna Jonez, Alexandra Von Fuerst, Francesca Allen, Camila Falquez, Martina Matencio, e as brasileiras Luisa Dörr e Carine Wallauer.

De qual projeto seu você tem mais orgulho?
Hoje, meu maior projeto é meu portfólio. Gosto de conectar momentos diferentes, autoral e trabalho, retrato e arquitetura, e ver que no fim o discurso é um só. Mas se for pra falar de um projeto que nunca superei, que ainda guia meu estilo, foram as fotos que pensei e produzi para o Movimento Naked Lady, projeto com idealização, curadoria e direção da designer Karen Hofstetter, no início de 2016. Tava começando na fotografia e foi um grande, grande desafio. Era um cheque em branco, com tema (feminismo) e uma paleta de cor. Me orgulho em dizer que, apesar da inexperiência, cheguei em uma proposta sozinha. Apesar da vergonha, consegui escrever sobre as fotos e embasar meu pensamento. Na época estava em agência de publicidade, pedia opinião pra colegas, ouvi chacota da parte de homens que eu admirava, então demorei até pra entender se gostava dessas fotos. Mas, hoje, entendo, amo, e sinto que foi o começo de tudo que faço agora. Gosto de refletir sobre os desafios sendo superados, o tanto que a gente cresce até mesmo quando não acredita em si.

Quais são seus sonhos?
Não sei dizer! Nunca soube, na verdade. Sou uma pessoa solta na vida. Hoje, com 26 anos, acho que começo a esboçar o que seriam sonhos. Reconhecimento na carreira, ter uma casa própria, essas coisas. Uma coisa que sempre passa pela minha cabeça é que quero conviver com meu trabalho sem sentir que ele me desmerece.Quando volto pro interior sinto um questionamento geral em torno do que eu faço. E ainda tem o fato de que moro com alguns familiares, todos homens, que essa semana disseram que preciso fazer mais do que eles do serviço doméstico porque meu trabalho não é tão sério quanto o deles. Porque eles trabalham “fora”, fazem esportes, então não têm tempo pra cuidar de casa. Talvez pra alguns pareça bobagem, mas, sendo mulher, sendo artista, é preciso me assumir. Por isso, quero que meu trabalho floresça e fale por si só. Que que ele se baste.

 

Mari Cobra é diretora, roteirista e fotógrafa. Com um olhar característico para a potência feminina, seu trabalho retrata a beleza em sua essência. Além do documentário Nosso Sangue Nosso Corpo, é também autora do projeto Divinas, série de fotos analógicas dedicada a retratar a beleza de mulheres latino-americanas fora do padrão imposto pela sociedade

 

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