Não é porque você nasceu com um útero que precisa usá-lo
Como se ser mulher e não ter filhos fosse um defeito, uma falha trágica, uma obra inacabada, um jogo de futebol sem gol. E por quê?
31.08.2021 | Por: Jaqueline Vargas
Na véspera dos 50 anos, estamos no final do primeiro tempo, quiçá no começo do segundo. Por mais saudável que sejamos, a probabilidade de chegar aos 120 anos é rara. Então, meio natural que essa década entre os 40 e 50 seja um momento comum para a famosa avaliação da vida. E foi nesse momento que eu consegui colocar no papel minha trajetória com a maternidade. Este ano publiquei um livro de poesias chamado “Aquela que não é mãe” pela Ed. Buzz. Nunca tinha me aventurado pelo mundo dificílimo da poesia. Pelo título, é meio óbvio: não tive filhos. Isso até certa época foi uma grande questão, e os filhos são sempre uma questão para a mulher. É ela que passa pela gestação, dá a luz e tudo aquilo que você já está cansado de saber. É o papel dela, sua função primeira. Pelo menos eu que sou da década de 70, subúrbio do Rio de Janeiro, fui criada para pensar assim.
Só que a minha vida e o meu corpo optaram por caminhos diferentes e durante esse trajeto, sem engravidar, eu sempre me senti acompanhada de um sentimento fantasma de não pertencimento. Sendo mais clara, por mais realizações que eu tivesse, faltava algo para permitir meu ingresso no clube das mulheres completas. Quando comecei a pôr no papel tudo o que senti até assumir que ser mãe não era pra mim, é que ficou evidente como nós mulheres exigimos de nós mesmas e das outras. A competição e a rivalidade, disfarçada de provérbios e ditos populares, se enraizaram e se naturalizaram na nossa vida. Pense um pouco: você ouvia as pessoas falando em sororidade o tempo todo na década de 80? Pois então.
Tudo é construção narrativa. A história que você conta e repete até se tornar verdade. Como escritora e roteirista há mais de 20 anos, acredito com todas as forças do meu ser no poder de uma boa história. E qual foi a história contada para nós, seres dos cromossomos XX? Nos últimos séculos e por necessidade econômica nos foi dito que ser mãe era a tarefa máxima, a realização maior, o amor supremo, incondicional e incomparável. Eu acreditei por muito tempo, por tanto que passei grande parte da minha vida adulta tentando me encaixar nesse padrão. De alguma forma, meu inconsciente me salvou. Sempre acontecia alguma coisa que me desviava da maternidade. Em grande parte meu corpo. Por mais que fisicamente não existisse nada de errado comigo, eu não engravidava. Simplesmente não acontecia. Lógico que passei por vários médicos, exames, tratamentos, alguns invasivos, outros dolorosos e até alguns procedimentos cirúrgicos que não deram em nada.
Diante do olhar consternado de muitas mulheres com a minha resposta esquálida “não tenho filhos”, comecei a acrescentar que não os tinha por uma questão de saúde. O olhar mudou. Era melhor ser doente do que não querer ter filhos ou parecer aliviada por não tê-los. Foi preciso muito para que eu me entendesse e entendesse também o meu corpo. Tanto hormônio me desorganizou e com 26 quilos a mais, decidi que havia tentado o suficiente. Já tinha justificativas suficientes para minha falência maternal. Somente depois é que me dei conta do tanto a que me submeti para poder me provar diante do mundo. Como se ser mulher e não ter filhos fosse um defeito, uma falha trágica, uma obra inacabada, um jogo de futebol sem gol. E por quê? Me pergunto, caso ocorra uma crise global de alimentos, pensemos que a China liberou mais de um filho, e o mundo enfrente uma grande escassez de grãos. Será que a sociedade de consumo continuará dizendo que a maternidade é o nirvana para as mulheres? Ou será necessário baixar a taxa de natalidade?
Independente de como somos manipuladas ou não, ser mãe é algo importante e, sim, intrínseco, mas não involuntário ou compulsório. Aprendi da maneira mais árdua. Não é porque temos útero que devemos procriar. Se existir o desejo, se o desejo for genuinamente nosso. Aí tudo pode. Estamos validadas. Levei muito tempo para entender isso e mais, entender que ser mulher é muito diferente de ser mãe.
0 Comentários