Não está tudo bem, mas vai ficar

Acreditar que a luta antirracista protagonizada em manifestações ao redor do mundo não é apenas uma onda me faz sobreviver ao horror

17.06.2020  |  Por: Michelly Mury

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Não está tudo bem, mas vai ficar

Sempre me intrigou a forma como a flor de lótus, símbolo hindu da beleza interior, emerge das águas turvas e impuras de onde ela nasce sem se sujar. É a própria representação de como viver no mundo sem se contaminar pelo entorno. E foi observando a flor de lótus que durante muito tempo vivenciei um universo de sensações e sentimentos paralelos como método de sobrevivência ao racismo estrutural.

O racismo é tão perverso que primeiro ele naturaliza a nossa inexistência nos espaços, quando chegamos ele tenta nos embranquecer para permanecer dentro das estruturas e por fim ainda tenta naturalizar a falta de mais negros nesses espaços.

O ano de 2020 chegou e com ele uma pandemia. As pessoas se viram obrigadas a ficar dentro de suas casas, num movimento inédito de recolhimento coletivo. À medida que os dias de confinamento foram passando, parece que todos começamos a olhar pra dentro e enfrentar nossos fantasmas e um enorme desafio: viver o presente.

E não é que em meio a tudo isso, motivadas por sequenciais crimes de crueldade contra a comunidade negra, floresceram a revolta e a vontade numa grande parcela da branquitude de entender a fundo seus privilégios em detrimento das condições básicas de existência da população negra? Muitos amigos brancos me procuraram na sequência. Parece que chegou a hora de solucionar a desigualdade. Mas por quê? Qual foi o gatilho pra essa compensação dos séculos de colonialismo que instituiu no mundo práticas escravocratas? Por que de repente vemos uma barreira de pessoas brancas entre a polícia e manifestantes negros, servindo de escudo?

A branquitude está vivendo o distanciamento que nós, negros, vivemos há séculos

Seria porque nesse momento, obviamente em níveis diferentes, todos nós de certa forma passamos a ocupar o lugar do oprimido? O indivíduo branco se vê envolto em barreiras que impossibilitam o toque, a troca, o afeto, e através do distanciamento social que tanto experimentamos numa sociedade racista, a branquitude sai da projeção pra experimentação. Não interessa a cor da pele quando a sua luta é se proteger de um vírus com alto poder de transmissão. Agora você atravessa a rua quando uma pessoa vem na sua direção, qualquer que seja a cor. No supermercado, você mal olha pra pessoa que está na fila. A branquitude está vivendo o distanciamento que nós, negros, vivemos há séculos.

A empatia dos brancos saiu do campo da projeção, forçada pela própria experimentação da sua inexistência frente ao isolamento social. Isso eclode em questionamentos sobre a falta de negros ao seu redor, em sua convivência. Foram muitos assuntos. Saber como pleitear mais profissionais negros em cargos de direção nas suas empresas, nas escolas dos filhos. Para repensar políticas públicas de inclusão. Para agradecer. Para ouvir. 

Meu melhor amigo, renomado jornalista na França, cedeu espaço pra um colega negro debater o racismo num conhecido canal de TV. Quando perguntei por que, a resposta foi direta: “Eu sou branco. Eu não sofro preconceito racial, Michelly. Eu posso falar por horas sobre como esse país é racista, mas neste momento é preciso dar voz pra quem sente na pele. Se não, fica sem sentido.” Foi a primeira vez que fui confrontada com a liberação de um privilégio branco de alguém que eu amo.

O sentimento de que as pessoas ao meu redor estão mudando e vindo na minha direção está fincado nessa coerência. Uma coerência que fez a minha terapeuta repensar e me sugerir iniciar um trabalho com uma terapeuta negra. Que faz a minha amiga mais querida, que eu conheço desde os 2 anos, vir me perguntar como ser antirracista através das redes sociais de sua marca. Que traz pra perto uma querida diretora de produção em cinema me dizendo que não quer mais ver negros somente em cargos de assistência mas nas cabeças das equipes.

Houve um black out real, um movimento enorme de pessoas públicas cedendo suas redes sociais para negros falarem sobre inclusão, empregabilidade e luta. Algumas marcas e meios de comunicação se retrataram publicamente por suas condutas e apresentaram novos formatos e propostas de mudanças dentro de suas estruturas. 

O ponto-chave para a mudança de uma sociedade em busca de igualdade é abrir espaços pra que a nossa intelectualidade negra se consolide no âmbito social

Da noite pro dia, recebi vários pedidos de consultoria para empresas diversas preocupadas pois têm poucos pretos no seu quadro. Mas por que só se deram conta disso agora? Estamos vivendo uma revisão minuciosa de comportamentos de mercado que contribuem com a desigualdade, e mesmo assim ainda vemos empresas replicando estereótipos racistas em suas campanhas e formação das equipes. Ora, se o racismo consiste no preconceito e na discriminação com base em fatores biológicos entre os povos, como isso se prolonga pro âmbito sócio-econômico? O racismo é um tipo de preconceito aliado ao poder. E é sobre poder que a nossa sociedade deve refletir. Nós, negros, deveríamos ter a possibilidade de possuir. Possuir desde condições iguais de existência, passando pelo desenvolvimento de potencialidades e por fim a possibilidade de construir nossos próprios padrões como referência.

Ainda temos muitas transformações pela frente e todo esse processo certamente ainda atravessará gerações. Ainda não está tudo bem, mas tenho certeza de que vai ficar. E se você, amigo branco, quer de fato mergulhar na luta antirracista, te aviso logo que não vai ser fácil. Tem dias que vai doer tanto que vai dar vontade de desistir, de se calar. Eu carrego na minha pele muitas dores, muitas delas nem são minhas, são dos meus antepassados, e isso pra mim define a luta.

O ponto-chave para a mudança de uma sociedade em busca de igualdade é abrir espaços pra que a nossa intelectualidade negra se consolide no âmbito social. Num grupo de amigas fui consultada sobre um plano de ações para inclusão racial dentro das nossas políticas públicas. Foram inúmeras ideias colocadas com todo o cuidado pelo núcleo que representa a branquitude no grupo. Minha resposta ficou ecoando como um mantra: “Para ser antirracista precisamos derrubar muitas de nossas próprias estruturas.” A luta só evolui quando saímos dos contextos individuais e partimos pra uma militância coletiva.

E você, está disposta a derrubar as suas?

 

Michelly Mury atua na cena musical brasileira como consultora para projetos musicais com inclusão e diversidade. Atualmente à frente da coordenação artística da Casa Natura Musical, em São Paulo, também atua como curadora artística de festivais e festas. Entre 2006 e 2011 esteve a frente da programação artística da casa de espetáculos Fundição Progresso, no Rio de Janeiro. Entre 2009 e 2019 foi proprietária da Superlativa Eventos, onde atuava na produção, lançamento e distribuição de CDs e DVDs, venda e realização de shows, elaboração de projetos culturais e agenciamento artístico de nomes como Casuarina e Clarice Falcão. Em 2020, fundou a Alfazema Produções Artísticas

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