‘Não existem países perigosos, existem pessoas perigosas’
Reportagem do 'New York Times' alerta sobre a falta de segurança que as mulheres enfrentam ao viajar sozinhas
27.03.2019 | Por: Gaia Passarelli
Existe um fosso entre o mundo real e a selfie bonita da moça explorando Barcelona no Instagram, hashtag #WeAreTravelGirls. Nesse fosso estão as histórias de ataques a viajantes experientes em diferentes lugares do mundo que estão na reportagem “Adventurous. Alone. Attacked.”, publicada esta semana pelo New York Times.
Um dos casos é o da advogada Vasilisa Komarova. Nascida na Rússia, ela estudou direito, mudou para Londres e, aos 35 anos, decidiu realizar o sonho de viajar o mundo. Comprou uma motocicleta e começou pelas Américas. Visitou Cuba, o Deserto do Atacama e outros lugares, registrando em seu Instagram.
“Em junho de 2017, enquanto estava acampando na Bolívia, em uma área considerada segura, três homens portando machetes a arrastaram para fora da barraca. Eles a espancaram, deslocando seu braço em três pontos diferentes. Enquanto dois a seguravam, um a estuprou. Então eles destruíram sua motocicleta, urinaram em sua barraca e a deixaram para morrer.” O relato, difícil de ler, é um dos casos descritos pela reportagem do New York Times, que menciona casos de violência sexual e feminicídio em lugares tão diferentes quanto Marrocos, Costa Rica e Nova Zelândia.
São relatos de violência sofridas por viajantes longe de suas casas que, infelizmente, não são tão diferentes dos riscos corridos por mulheres em suas próprias cidades. A dificuldade de Vasilisa frente aos sistemas jurídicos da Bolívia, também narrados na reportagem, também encontra eco na experiência real de mulheres em todo lugar.
“O alerta de precisarmos estar sempre nos vigiando, sozinhas e em espaços públicos, é algo que homens não precisam obrigatoriamente conhecer”, diz a norte-americana Cassie DePecol, que em 2017 se tornou a primeira mulher a viajar sozinha para todos os países do mundo.
Enquanto o mundo ensinar mulheres a tomarem cuidado no lugar de ensinar homens a não serem estupradores e assassinos, ser mulher no mundo sempre vai significar estar vulnerável
A reportagem, que também traz dicas de segurança das viajantes e redes sociais onde mulheres trocam alarmes, joga luz em uma questão encarada por qualquer mulher que viaja: a vulnerabilidade.
Desde que lancei meu livro, em 2016, tenho falado em encontros de mulheres viajantes com colegas e entusiastas do mundo da viagem, normalmente sobre temas edificantes como autoconhecimento e o aprendizado com outras culturas. Mas a questão da segurança sempre aparece. “Como se sentir segura?” é uma pergunta frequente, como realmente tem ser. E não há uma resposta. Você pode aprender krav-maga, carregar um GPS, manter pessoas longe sempre informadas sobre seus passos, carregar uma taser-gun. Você pode estar com o corpo todo coberto e pode até mesmo estar na companhia de outra pessoa (como aconteceu com as duas turistas argentinas assassinadas no Equador em 2016). O fato é que, enquanto o mundo ensinar mulheres a tomarem cuidado no lugar de ensinar homens a não serem estupradores e assassinos, ser mulher no mundo sempre vai significar estar vulnerável.
“Quanto mais nós dizemos que mulheres não podem viajar sozinhas e que o mundo é um lugar perigoso, mais nós estamos contribuindo para isso não mudar,” diz Hannah Gavios, do Queens nova-iorquino, outra viajante citada pelo NYT.
Hannah sofreu uma fratura na espinha e perdeu movimentos das pernas ao sofrer um ataque sexual na Tailândia – um dos destinos preferidos de viajantes mochileiros de todo o mundo. Ela (que recobrou seus movimentos e não só continua viajando, como participou da Maratona de Nova Iorque usando muletas) quer que sua experiência sirva para inspirar outras mulheres a enfrentarem seus medos e ocuparem seus espaços.
“Mais do que assustar outras pessoas, eu quero que as pessoas encarem o mundo com mais bravura e também mais conhecimento,” ela continua. “Não existem países perigosos, apenas pessoas perigosas.”
Gaía Passarelli é jornalista e escritora, autora de Mas Você Vai Sozinha? (Globo Livros, 2016). Nascida e criada em São Paulo, mora num prédio velho da Bela Vista com o filho, três gatos e uma crescente coleção de guias de viagem. Você a encontra no twitter @gaiapassarelli e no site gaiapassarelli.com
0 Comentários