Negra, mulher e regente de orquestra

À frente do musical ‘2 Filhos de Francisco’, Cláudia Elizeu trabalhou como pianista por 40 anos até se tornar maestrina: ‘Por uma tradição machista, a música clássica é um reduto de homens. Eu furei o bloqueio’

05.12.2017  |  Por: Audrey Furlaneto

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Negra, mulher e regente de orquestra

Quando Cláudia Elizeu tinha 4 anos, começou a ter aulas de música. Naquele tempo, não sabia nem ler, nem escrever. A garota do Méier, na Zona Norte do Rio de Janeiro, crescia numa família modesta, de poucas posses, e que frequentava uma igreja evangélica, em cujo altar reinava, entre outros elementos, um piano. Era dele o som que animava os cânticos do culto e que motivou seus estudos de música: os pais da menina levaram-na a um professor na rua vizinha e, lá, durante anos, Cláudia passou quatro, cinco horas todos os dias tomando lições do instrumento.

Aprendeu a ler partituras antes de palavras. Aos 8, quando ingressou na escola normal, entrou também para a Escola de Música Villa-Lobos. Desde então, passou quatro décadas como pianista — em escolas de balé aqui, em peças acolá — até, enfim, estrear como regente de orquestra. Hoje, aos 46, ela é maestrina pela quinta vez, agora do musical 2 Filhos de Francisco.

Baseado no filme homônimo e com o mesmo diretor da obra original, Breno Silveira, o espetáculo (em cartaz em São Paulo até 25 de fevereiro de 2018) tem Cláudia Elizeu à frente da orquestra. Mas, para chegar ali, ela conta, foi preciso furar o bloqueio: “Sou mulher e negra e, mesmo sabendo da minha formação, ninguém me escalava para tocar em espetáculos, muito menos para reger.”

Foto: Arquivo pessoal


Foi só aos 40, quando precisou substituir o regente de Beatles num Céu de Diamantes, que expôs de fato seu trabalho, cercado de elogios da produção à época. Não por acaso, em seguida, vieram os convites para reger outros cinco musicais, de Rock in Rio e Elis a 2 Filhos de Francisco.

Desde a estreia deste espetáculo, no final de setembro em São Paulo, Cláudia fica entre o teatro e sua casa, no mesmo Méier onde cresceu. Lá vivem Bruno (18 anos) e Allan (22), os dois filhos que a maestrina cria sozinha desde o divórcio, em 2009. A casa também passou a ostentar um piano nos idos dos anos 2000, quando ela finalmente pôde comprar o instrumento — na infância e na adolescência, usava o da igreja do bairro ou o do professor.

Reger, naqueles tempos, era um sonho muito distante. “E ainda é um tanto raro você ver mulheres regendo no Brasil. Em São Paulo, por exemplo, eu mesma conheço duas maestrinas.” O motivo: “Existe uma tradição de a música clássica ser um reduto de homens. E é uma tradição machista, mantida por homens e também por mulheres do meio”, lamenta, mas sem amargura: “No meu caso, ainda tem o fato de eu ser negra. Imagina isso! Uma negra abusada, não?”, diz, emendando uma risada.       

 

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