Nem autoajuda, nem cura: eu precisava viajar simplesmente para ir

Carol trocou a vida ajeitadinha pelas trilhas da América Latina. Em uma série de textos vamos acompanhar as motivações, os perrengues e as transformações de largar tudo e cair na estrada

14.10.2019  |  Por: Carolina De Marchi

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Nem autoajuda, nem cura: eu precisava viajar simplesmente para ir

“Viajar segue sendo um gesto de desespero,
roçar, por um momento ou uns dias, todas essas vidas que nunca poderei.
Não há nada mais brutal, mais cruel que entender que poderia ter sido tantos outros.
E, às vezes, o alívio.”  Martín Caparrós, escritor argentino

O ano era 2016 e eu estava living the dream do pequeno hipster-burguês paulistano: morava sozinha num apê alugado em Pinheiros a poucas quadras do trabalho, uma agência cool onde ocupava um cargo legal, salário bom, obrigada. Atendia clientes sustentáveis, tinha flexibilidade de horários, amigues interessantes, um namorado, praticava escalada e treino funcional, viajava regularmente. Na agenda, programas culturais, cursos de teatro e filosofia, projetos paralelos, ativismo. O pacote completo. Mas aquela rotina parecia de plástico. Os dias passavam e eu não tinha memória precisa do que acontecia. Não, não tive um burnout. Sou plenamente consciente dos meus privilégios de então.

De tanto fazer apresentações de Keynote, teria minha vida se tornado uma? Ou seria uma planilha de Excel? As conversas, de repente, ficaram superficiais e entediantes. As pessoas pareciam descoladas demais. Faltava tempo e um horizonte que não fosse de concreto. Eu olhava para as contas no final do mês e seguia achando meu custo de vida um absurdo. Não era culpa; era consciência mesmo. Estava tudo tão automatizado que a criatividade parecia um membro amputado, ainda que eu estivesse numa bolha de hiperestimulação. Me sentia anestesiada. Os trajetos do cotidiano não davam conta de uma vontade: a intensidade da aventura.

A pergunta ia e voltava: seria essa a minha vida? A inquietude não vinha da tão batida busca do propósito e sim dos outros modos de existência no mundo para além do que me ensinaram como trajetória possível. Eu queria outra paleta de cores, menos tempo na frente do computador, mais pé no chão. Menos briefings, mais dedo de prosa. Menos batom vermelho, mais cara lavada de mar. Desejava o mistério do desconhecido arrepiando a pele. Que outras histórias eu poderia contar? Que tensões, simplicidades e descobertas me aguardavam lá fora? Mais do que saber, eu queria experimentar.

Terminei o namoro, pedi demissão e me mudei para um apartamento menor para economizar. Ainda não estava claro pra que eu estava guardando dinheiro, apenas uma sensação. (Antes que você me ache uma neurótica que não sabe ser feliz, saiba que eu faço muita terapia.) Mas dizem para confiar no instinto, então lá fui eu confiar nesse treco que me comia as entranhas. Fiz meditação tântrica, acupuntura, subi montanhas. Vale tudo para acessar o que a gente não consegue dar nome.

Não tive nenhum estalo, foi processo. A viagem sempre esteve no meu sangue, então quando surgiu a ideia de mochilar pela América Latina, sozinha, por vários meses, foi quase como lembrar de um sonho de infância. Muito mais do que um ano sabático, o desafio para mim mesma, que tinha sempre tudo tão planejado, era a entrega à espontaneidade. Sem data de volta, sem roteiro muito definido, sem grandes expectativas, me permitindo mudar tudo quando quisesse. Esse seria meu esquema.

Não estou aqui para fazer um texto de autoajuda e glamourizar a viagem como cura, como mágica, a resposta para todas as perguntas. Na real, depende de você. As grandes viagens são assim mesmo, elas apontam caminhos sem volta. O que a gente aprende de verdade é só nosso. Ninguém enxerga na foto, ninguém leva do post, ninguém absorve do mesmo jeito. É por isso que precisamos problematizar as fórmulas prontas de estilo de vida e brisar sobre o rompimento de bolhas.

Para tudo: cê vai mesmo?

Antes que pudesse dar contorno ao desejo, recebi uma proposta de trabalho dessas irrecusáveis – só para bagunçar os sentidos. Parece que o universo estava me testando. Foi difícil, mas decidi encarar mais um ano de SP. Um ano suado e importante. À medida em que os meses passavam, o cotidiano ameaçava me engolir de novo e a certeza de estrada só crescia. Havia insegurança e medo, claro, mas eu estava disposta a partir com eles também.

Quando eu pensava na viagem, um sentimento de expansão e liberdade me inundava. Não era um “vou ali e já volto”, era uma investigação de vidas pelo nosso continente, tão maravilhoso quanto desigual, tenso, ancestral, diverso. Quase cedi à tentação de ter projetos norteando meu caminho, mas resisti ao giro frenético da produtividade. Afirmei a viagem como projeto em si. Já era hora de dar uma boa pausa em deadlines que não fossem os meus, olhar mais para o calendário da lua do que o do Google, dizer tchau para as planilhas, para os boletos, apenas ir. Leve. Dentre tantas, uma pergunta principal me conduzia: o que é, afinal, ser uma mulher latino-americana?

No dia 25 de dezembro de 2017 embarquei num vôo só de ida para Salvador, na Bahia, com uma mochila nas costas. Tinha entregado o apartamento, vendido e doado meus móveis. A partir dali, foram 18 meses percorrendo Argentina, Chile, Bolívia, Peru, Equador, México e Guatemala. O que vivi nesse tempo não há conversa, livro ou palestra que dê conta de traduzir. Mas foi tão especial que vou tentar traduzir e compartilhar aqui e uma série de textos. Colocar em palavras essa experiência que, com a licença do clichê, transformou minha vida.

 

Carolina De Marchi é viageira, jornalista, gestora de projetos e produtora cultural latino-americana. Aprendiz de poeta, amante de sotaques, pessoas e boas histórias. Poderia ser cônsul ou trabalhar no circo. Teima em (r)existir no Brasil, por ora

4 Comentários

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4 respostas para “Nem autoajuda, nem cura: eu precisava viajar simplesmente para ir”

  1. Camila Mengue disse:

    Oi Carol, lindo texto estou animada para os próximos. Engraçado como as sincronias existem. A aproximadamente um mês, por questões no trabalho, me passou pela cabeça que não era aquilo que me motivava a viver, e brotou essa ideia de viajar a América Latina. E sem procurar eu encontrei este texto, cada vez mais vai me dando certeza do que necessito fazer.

  2. Cássia disse:

    Carol como te acho no Instagram? Sua história me inspirou muito, pq passo pelo mesmo momento do eu texto.

  3. Magaly Andriotti Fernandes disse:

    Carolina, adorei teu texto e tua história, penso que a vida é bem isso, seguir nossos instintos, ir em busca de nossos sonhos, e estar sempre sonhando, e ter essa noção de que o momento, é o presente. Amei.

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