‘Nin’ | Ser mulher me inflama

Pesquisas mostram que cerca de 15% das mulheres em idade reprodutiva têm suas vidas afetadas pela endometriose. Sou uma delas, e isso dói

15.12.2017  |  Por: Letícia Gicovate

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‘Nin’ | Ser mulher me inflama

Arte: Julia Debasse

Um descontrole, o desencontro do úmido com o quente, células no lugar errado e na hora errada, algo que se acumula, algo que escapa, que me escapa, dentro e fora, sangue com a pele, se espalhando, crescendo e fazendo doer.

Aos 14 anos, eu fui visitar uma amiga e a encontrei na cama se espremendo de dor com uma bolsa de água quente na barriga, enquanto a mãe fazia carinho na testa, solidária e impotente, como todas as mães quando filho sente dor. Era uma dor que eu ainda não entendia, mas me parecia uma dor gostosa, que eu estava doida pra sentir, a dor de ser mulher. Mas por que ser mulher doía?

Ser mulher já me doía de muitas outras formas quando há oito anos eu comecei a desmaiar de dor. Dessa vez uma dor física alucinante que me paralisava e me deixava de cama por dias, todo mês. Passou-se um ano até eu ouvir a palavra endometriose pela primeira vez. A médica me falou daquilo com um pesar desgraçado que me parecia desproporcional ao tratamento, eu não podia menstruar, longe de me parecer tão ruim assim.

A ignorância tem sua beleza, e a endometriose só foi se revelar tão feia quanto seu nome um tempo depois, quando novamente alucinada de dor descobri que mesmo tomando a pílula todo santo dia ainda menstruava, tinha desenvolvido um cisto do tamanho de uma laranja num dos ovários e precisava fazer uma cirurgia o quanto antes.

Então, sentada na cadeira do quinto ginecologista, ouvi outra palavra assustadora que nasce colada com endometriose, dessa vez não exatamente uma palavra nova, mas uma bem remota até então: infertilidade, a consequência mais escrota dessa doença feminina, esquisita e inexplicável, como a maioria de nós.

Eu tinha 29 anos e finalmente via um chão sob meus pés, depois de anos viajando, em todos os sentidos. Estava começando um namoro, uma nova carreira e tinindo de vontade de tudo que se tem aos 20 e muitos, quando, em pleno pré-operatório, com uma nuvem de nomes feios e possibilidades ainda piores me rondando, eu parei de tomar a pílula, só de birra, e em poucas semanas eu engravidei. Assim, pá!

Milagre, sorte, destino, exceção… nesse parágrafo caberia um “e foram felizes para sempre”, mas era só mais um começo.

Cinco anos se passaram sem que eu fosse incomodada pela minha inimiga de nome feio, até descobrir em exames semestrais que ela estava voltando quietinha, como fazem as doenças mais sacanas. Mas eu me fazia de besta e seguia a vida, casada, com uma filha, vivendo no interior da Inglaterra, quase feliz como todas as pessoas, com endometriose ou não.

Só que eu me sentia cansada, sempre muito cansada. Então começaram as infecções urinárias. E uma dor incômoda nas costas, que irradiava pelas pernas, bem chata. Mas devia ser falta de vitamina D, falta de água e excesso de sofá. Até que voltaram as cólicas menstruais monstruosas, debilitantes, incapacitantes, no começo alguns dias por mês, de repente ela pintava a qualquer hora, até eu perceber que estava há meses, todos os dias, sentindo dor.

O que faltou ouvir em todas as consultas, com cerca de nove médicos diferentes entre o Brasil e a Inglaterra, é que a endometriose é uma doença crônica progressiva, que se alastra por outros órgãos, que causa fadiga crônica, que traz juntinho pelas mãos cerca de outras 20 outras doenças associadas, que ainda não tem causa definida e que não tem cura.  

E eu estou longe de estar sozinha: pesquisas mostram que cerca de 15% das mulheres em idade reprodutiva têm suas vidas afetadas pela doença, gente pra cacete! E o pior, as mesmas pesquisas dizem que leva uma média de sete anos pra que as mulheres sejam levadas a sério pelos médicos, sem que as dores horrendas e os outros sintomas sejam tratados como faniquito ou uma questão natural. Dor de ser mulher.

Há dois meses um cirurgião retirou focos de endometriose do meu útero, da minha bexiga, um cisto do meu ovário, descolou alguns órgãos grudados pelos tecidos zoados do endométrio, e colocou em mim um DIU hormonal, uma das formas encontradas de controlar o avanço da doença, uma vez que a cirurgia só serve pra limpar a bagunça. E eu tive sorte, muitas mulheres acabam tendo que recorrer a uma histerectomia completa.

Ser mulher dói.

Hoje em dia os sintomas ainda me chateiam, às vezes me dão um nocaute, e entre controle hormonal, acupuntura, fitoterápicos, fisioterapia, uma dúzia de suplementos e meia dúzia de remédios na manga, eu sigo tateando um jeito de mudar de assunto e criar uma nova rotina, sem que a endometriose paire como uma mosca sobre a minha cabeça. Já entendi que existem alguns gatilhos pra dor, como os horários malucos de dormir (culpada), a alimentação ruim (é…) e o estresse (não preciso comentar), que eu posso controlar. Já entendi que existem coisas com as quais eu simplesmente vou ter que conviver.

Agora mesmo, em vez de escrever combinando café com Bob Dylan, estou acompanhada de chá de cúrcuma e All Chacra Healing Meditation Songs. E não, eu não estou me sentindo uma pessoa melhor, eu acho tudo isso um saco, mas uma doença crônica pede mudanças crônicas, e eu espero logo encontrar um laço mais amigável entre a endometriose e eu.

Ser mulher me inflama, me dói e me ensina.

Ser mulher é tudo o que eu sei, posso e quero ser.

P.S.: Meu relato não é o seu diagnóstico, se você se identificou procure um especialista antes de sair pirando no Google! 

Letícia Gicovate é editora de conteúdo, escritora e uma das criadoras, ao lado de Alice Galeffi, da revista Nin, que tem espaço cativo em Hysteria a cada 15 dias

1 Comentários

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Uma resposta para “‘Nin’ | Ser mulher me inflama”

  1. Flavia Borges disse:

    Convivo conscientemente (pois foi quando eu soube) desde 2014 com a nossa querida endometriose que descobri só porque em umas férias na Chapada Diamantina andando numa trilha com sol na cabeça quase desmaiei me entupi de remédios pra dor que quase destruiu meu estômago. Tomo mês tenho a sensação de que um duende de botas pontudas se instala da minha lombar e me dá chutes para que eu sinta dores até o dedão do pé. Mas da minha jornada de busca de médicos e soluções o pior é ouvir que a gravidez é o que cura a endometriose. Acho uma irresponsabilidade tratar a gravidez e a mulher desta forma. Excelente texto Letícia!

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