No filme ‘Roma’, o México de 1970 é vizinho do Brasil de 2019

Primeira produção da Netflix a concorrer ao Oscar de Melhor Filme, o novo longa de Alfonso Cuarón levanta temas atuais e pertinentes ainda que quase 50 anos separem a época retratada de hoje

24.01.2019  |  Por: Amanda Pinho

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No filme ‘Roma’, o México de 1970 é vizinho do Brasil de 2019

Isso não é uma crítica cinematográfica. Deixo as análises sobre o preto e branco, as cenas marcantes e os planos-sequência para os colegas cinéfilos. Falo como espectadora, que em um fim de semana qualquer viu em uma representação do México da década de 1970 discussões muito pertinentes ao Brasil de 2019.  

Roma, de Alfonso Cuarón, foi oficialmente coroado como um dos melhores lançamentos do ano. Na última terça-feira, o longa recebeu dez indicações ao Oscar. É a primeira produção da Netflix a concorrer na categoria de Melhor Filme, e a indicação de Yalitza Aparicio como Melhor Atriz também é digna de nota — ela é a primeira latino-americana em 14 anos a ir pra essa disputa, e a primeira da história de origem indígena.

Mas, como eu disse, isso não é uma crítica cinematográfica. Talvez tenha spoiler, mas se você vive no Brasil de 2019 os temas não vão muito além daqueles que discutimos (ou evitamos discutir a todo custo), seja na internet, na mesa do bar ou em um jantar de família.

Relação patrão-empregado

De cara, parece que Roma é só sobre a relação entre patrões de classe alta e empregadas de origens mais humildes. Em rodas de amigos, sempre surgem comparações com o nosso Que Horas Ela Volta?.

Em Roma, a cena em que a família se reúne em torno da TV e que Cleo, a protagonista, é imediatamente incumbida de uma nova tarefa assim que se senta deixa muito clara a máxima de que a empregada é quase da família — em que esse “quase” fica bem explícito.

Acredito que tanto no Brasil como no México é bastante perceptível que essas relações têm mudado muito pouco, que a ascensão social incomoda e que desumanizar um empregado acaba sendo muito fácil.  

Violência obstétrica

Ainda que a relação patrão-empregado seja muito marcante, outras discussões vêm à tona com o novo filme de Cuarón. Fazendo uma busca mental, acho que os termos parto humanizado, violência obstétrica e até a profissão doula só entraram no meu vocabulário em 2013, quando uma ex-chefe, grávida, falou sobre o documentário O Renascimento do Parto.

Roma também desperta a urgência que temos em falar sobre isso. Na cena mais dramática do filme, Cleo está em uma sala de parto, sozinha e desamparada, e é difícil ter certeza se ela entende tudo o que se passa naquele momento, inclusive por conta da diferença linguística que existe.

Quantas Cleos deram à luz hoje no Brasil? Quantas mulheres nem sabem que sofreram violência obstétrica?

Abandono paterno

A presença feminina e a ausência paterna são sempre um grande contraste em Roma. Ainda que a chegada do pai, patrão de Cleo, seja sempre muito celebrada pelas crianças, fica visível seu papel de quase-figurante no filme e na rotina daquela família. Não parei pra contar, mas a impressão é a de que ele tem pouquíssimas falas. Até sua presença é marcada pelo silêncio.

O Brasil tem mais de cinco milhões de crianças sem pais no registro. Isso é alarmante, mas também é curioso pensar sobre o quanto a ausência paterna (especialmente afetiva) pode ser uma realidade até mesmo de quem tem um pai dentro de casa e o quanto esse abandono é rotineiramente “compensado” por outras mulheres além da mãe — no filme, a avó e as duas empregadas. 

Legalização do aborto

Yo no la queria. No quería que naciera.” Foi essa fala de Cleo que me deixou em lágrimas. Em uma das cenas mais bonitas do filme, a personagem confessa ter gerado uma criança indesejada. Parece cruel, e ela inclusive fala isso carregada de culpa.

A forma como seu namorado a dispensa ao saber que está grávida não transmite nada disso. Parece natural, é até algo que a gente espera ao longo do filme, o que também demonstra não só a facilidade do abandono paterno, como o tanto que isso significa uma imposição às mulheres: Cleo não tem nenhuma outra escolha.  

Outro exemplo do quanto um filme que se passa nos anos 70 segue sendo atual é encontrado na força da união entre as mulheres. As diferenças de classe acompanham o filme até o fim, mas a sororidade traz mensagens de esperança muito necessárias para o Brasil de 2019. Que venha o Oscar!

Amanda Pinho é de Belém e mora em São Paulo. Jornalista de formação, sempre atuou com publicidade nas redes sociais. Atualmente é community manager da Hysteria e redatora freelancer da Rock Content

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