Nos 20 anos de ‘Sex And The City’, os erros e acertos da série
Maria Clara Drummond critica o fim típico das comédias românticas dado à protagonista, Carrie Bradshaw
04.12.2017 | Por: Maria Clara Drummond
Sex and The City completa 20 anos em 2018. O seriado intercalou momentos feministas e ousados com outros conservadores. Abriu portas para visões mais atualizadas da feminilidade. Algumas críticas recorrentes podem ser desculpadas por conta do contexto histórico. Eu gostaria de comentar aquilo que os próprios produtores consideram o maior erro da série: o final feliz da protagonista Carrie com Mr.Big.
Darren Star, o criador do programa, conta que foi uma traição à filosofia inicial, de que as mulheres não precisam de um casamento para serem felizes. Mais do que isso, acredito que é uma falha no arco dramático da protagonista. Todas as demais personagens tiveram, uma a uma, o misbehavior consertado: Miranda e seu ceticismo amoroso, Samantha e sua recusa à vulnerabilidade, Charlotte e sua visão de mundo superficial. Mas Carrie, não: a personagem de Sarah Jessica Parker termina sua trajetória exatamente como começou.
Quanto a Mr. Big, sabemos pouco. As únicas características atribuídas a ele são genéricas, como gostar de jazz e charutos, e não podemos sequer definir sua profissão exata — o termo “executivo” pode servir para qualquer coisa. Quando eu era mais nova, achava que o fato de ele ser um homem de poucas palavras fazia parte de seu charme, trazia todo um mistério. Hoje vejo que ele apenas não tinha nada a dizer. Basicamente, Carrie é apaixonada por Mr. Big por ele ser um cara bonito, rico e inacessível. É quase como se ele pudesse ser substituído por qualquer exemplar parecido. Mr. Big ocupa o mesmo lugar do desejo consumista que um par de sapatos Manolo Blahnik.
A Carrie Bradshaw divertida, interessante e livre desaparecia sempre que ressurgia em cena Mr. Big. Essa dicotomia é visível principalmente em duas conversas distintas dela com a amiga Miranda. No episódio The Drought, Carrie admite: “Você devia ver como sou com ele. Não consigo ser eu mesma. Eu visto roupinhas: Carrie namorada, Carrie sexy, Carrie casual. Às vezes, flagro a mim mesma posando. É exaustivo.” Na terceira temporada, depois de mais um retorno da protagonista ao relacionamento tóxico, Miranda desabafa: “Toda vez que chega perto dele, você se transforma nessa vítima patética, carente e insegura. E o que mais me irrita é que você está sempre disposta a retornar a isso.”
Carrie não é exatamente apaixonada por Mr. Big, e sim apaixonada pela imagem de si mesma ao lado de um cara como Mr. Big, que, no primeiro capítulo, é descrito como alguém com quem ela jamais imaginaria ter alguma chance, “way out of my league”. Para isso, não importa que o relacionamento real lhe seja danoso, contanto que esteja viva a imagem do relacionamento ideal. Também em The Drought, antes de admitir seu sufoco por não conseguir ser ela mesma com o próprio namorado, Carrie começa o episódio descrevendo seu relacionamento como “dos sonhos”, mostrando a óbvia cegueira da protagonista. Ela passa o tempo inteiro tentando entender Mr. Big, mas não o enxerga como verdadeiramente é, e sim vê apenas a projeção do que inúmeras vezes chamou de “o homem perfeito”.
A única personagem que dividia seu idealismo romântico é Charlotte. Depois de um casamento não consumado com seu príncipe dos sonhos, Charlotte se apaixona por alguém muito diferente de sua aspiração inicial, mas com quem desenvolveu um relacionamento amoroso baseado em apoio mútuo. Para isso, ela teve que abrir mão do glamour dos muitos homens que se encaixavam na sua ideia de família margarina. Charlotte verbaliza em diversos momentos o quanto essa troca lhe proporcionou maior felicidade.
Já Carrie sucumbe ao medo de atingir os 40 anos sem a vida de casada. Chega a largar o emprego, intrinsecamente atrelado à sua personalidade, para se mudar para Paris, com um namorado de que não gosta. As cenas com ele, Aleksandr Petrovsky, o artista russo e milionário, mostram a mesma pornografia fashionista que atingiria seu ápice nos filmes derivados da série, com vestidos de opulência irrealista, atingindo o ridículo. Num segundo momento, ela se entrega de novo ao homem que mais a fez sofrer, ainda em busca do que sabe ser apenas uma fantasia. Se na abertura Carrie aparecia usando um tutu um tanto infantil, na última cena ela aparece com um vestido de princesa, mostrando que pouco amadureceu.
Os derradeiros episódios da série são uma preparação para essa escolha. Principalmente emblemática é a cena da última festa de Carrie em Nova York. Nela, uma party girl alguns anos mais velha cheira cocaína, passa vergonha, despenca da janela — e morre. Este seria o futuro de Carrie, caso continuasse na cidade com sua badalada vida de solteira. Aqui, o seriado abandona a teledramaturgia de vanguarda, acompanhando os percalços de uma anti-heroína neurótica e altamente sexualizada — e que só foi possível por estar na televisão a cabo (uma produção da HBO), e não na rede aberta, como narrativas de anos anteriores — e embarca num moralismo típico da década de 1950. As opções eram apenas o casamento ou a decadência.
Numa entrevista, Sarah Jessica Parker diz que Sex and The City não é sobre sexo, e sim sobre relacionamentos. Arrisco discordar: trata-se de uma narrativa sobre fantasia X realidade. Não à toa, a moda e o glamour são questões fundamentais que permeiam as personalidades das personagens. Por trás do estilo de vida moderno, as personagens desejam viver uma versão mais atualizada do American dream.
Há inúmeras críticas a respeito da frivolidade dos problemas dessas quatro mulheres brancas e ricas de Manhattan. Mas há um profundo sofrimento nas pessoas superficiais sempre que falham na tentativa de se encaixar nos parâmetros de uma sociedade tão materialista. A ideia das dramaturgias que também se encaixam nesse eixo é o aprendizado dos personagens rumo a valores mais sólidos e verdadeiros. Se a verve do programa fosse outra, Carrie Bradshaw terminaria sua narrativa dando uma volta completa, o que significaria um olhar mais cínico diante da nossa capacidade de mudança. Mas não é o caso. Os roteiristas cederam à pressão do público conservador que também identificava um bom partido em Mr. Big.
No final, a tão esperada declaração de amor “you are the one” do boy lixo redimido acabou soando algo tão falso como um deus ex machina, uma solução tão inverossímil e preguiçosa típica dos romances água com açúcar que inicialmente o seriado pretendia criticar.
Maria Clara Drummond é jornalista e escritora, autora dos romances A Realidade Devia Ser Proibida (editora Companhia das Letas, 2016) e A Festa É Minha e Eu Choro Se Eu Quiser (editora Guarda Chuva, 2013)
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Quero ler seus livros, ontem! “)