‘Nós não somos um nicho de mercado, nós somos o mercado’
Como a produtora Jacaré Moda está revolucionando paradigmas ao voltar o olhar para a estética da periferia
18.09.2018 | Por: Maria Clara Drummond
Fotos de Juliana Colinas
Até pouco tempo atrás, a moda era um terreno hegemônico, em que até as marcas mais alternativas, ou as que se pretendiam inovadoras, tinham um casting de modelos 100% branco-magro-alto. Naomi Campbell, Iman e Alek Wek eram exceção num universo que deveria ter elementos de vanguarda mas sempre foi essencialmente conservador – só para termos uma noção da situação, apenas este ano um fotógrafo negro foi autor da capa de uma Vogue americana, e isso só ocorreu por exigência da superstar Beyoncé.
Por aqui, a Jacaré Moda é uma das grandes responsáveis por essa mudança de paradigma. Há mais de 15 anos, Júlio César Lima, autodidata em moda e morador do Jacarezinho, na Zona Norte do Rio, começou o movimento “Jacaré também é moda”, em que buscava modelos nas periferias para inseri-las em grandes agências de moda. No início, o foco era o perfil fashion clássico: meninas altas e magras. Mas isso começou a mudar com a entrada de novos sócios, Lucas Rodrigues, Clariza Rosa, Helena Gusmão e Renan Kvacek, moradores de outros bairros da Zona Norte, em 2014. O lema que guia o projeto agora é: “Moda é resistência”.
Hoje, a Jacaré se apoia em três pilares: casting, cursos de formação e produção de moda, e conteúdo. O casting é o maior fluxo de caixa – trata-se do agenciamento de modelos que são jovens da periferia mas não são só modelos. “Eles são um perfil que demonstra a pluralidade da periferia e a realidade do Brasil. A gente sai do estereótipo do jovem da periferia a que a moda estava acostumada”, conta Clariza Rosa. Há diferentes tipos de curso de formação. Recentemente, a Jacaré realizou um no Instituto Europeu de Design, no Rio. “Falamos de imagem de moda e identidade brasileira, de como é construído o olhar do que é belo e estético, quais as referências dessa construção, usando a população negra como base, desde a época da escravidão até as imagens de moda”, continua Clariza. Há também cursos profissionalizantes de barbeiro, trancista, design de sobrancelha e maquiagem na sede da Jacaré Moda, no Jacarezinho. Confira abaixo nossa conversa com Clariza.

Imagens do editorial Quadros, fotografado por Juliana Colinas
Como foi o início do projeto?
O Julio comandou o projeto por 12 anos, mas de maneira espaçada, e voltada para a moda tradicional. Os demais sócios entraram a partir do concurso “A mais bela entre elas”, que levaria uma garota para uma agência grande de São Paulo. Foi um sucesso, com mais de 400 pessoas, algumas de fora do Estado. Aí percebemos que tínhamos uma história para contar e começou nossa estruturação enquanto negócio e a implementação de uma linguagem e conceito. A gente já havia feito faculdade, trabalhado em jornal e agência, e trouxemos essa experiência.
Qual o diferencial da Jacaré?
Nós somos uma produtora de moda que impulsiona talentos de pessoas periféricas e fazemos ações específicas para marcas e agências. Assim, a gente descentraliza a produção dos monopólios de comunicação fazendo novos negócios e trazendo gente nova, que está prestando atenção nos movimentos de rua, e assim podemos confrontar o lugar de poder e privilégio. A gente também faz produção de moda e conteúdo quando fazemos editoriais autorais. As marcas contratam a gente porque o nosso olhar é muito diferente da produtora de moda de Ipanema.

Antes, o grande público encontrava resistência para modelos que não tivessem um padrão eurocêntrico. Mas isso mudou de alguns anos para cá. A que você atribui essa mudança?
O grande divisor de águas foi a internet. Não acho que seja exatamente um espaço democrático, dado que os alcances são muito diversos, mas possibilitou uma troca de experiência, e assim as pessoas puderam acessar novas discussões. O movimento que transformou isso na vida das pessoas negras tem uns três anos. Uma enorme quantidade de mulheres passou por processos de identidade racial que influenciam muito nas nossas emoções. Recentemente, a população negra aumentou 15%. Isso não significa que estão nascendo mais negros, e sim que mais pessoas estão com orgulho de se declarar negras, assumindo seus cabelos crespos, e isso faz com que mais gente questione padrões de consumo. Daí, é um efeito borboleta.
Como isso se dá no mercado?
Esse movimento maior vem muito do poder dos coletivos locais. Daí começamos a alcançar novos mercados. Hoje, há muitas empresas falando com a mulher negra, com a mulher crespa, mas isso não acontece porque as pessoas dessa empresa são mais legais, e sim porque elas perceberam que nós não somos um nicho de mercado, nós somos o mercado.

E como isso é visível no dia a dia das pessoas?
O mindset mudou muito. As referências estão mais próximas. Antes, tinha apenas uma jornalista negra bem-sucedida. Hoje, há mais exemplos de sucesso. Temos cada vez mais gente fazendo suas próprias coisas, resolvendo com o que tem na mão, trocando peças de roupa com as amigas, fazendo upcycling, consumindo em marcas locais. As pessoas perceberam que não precisam mais ficar reféns de fast-fashion.
Existe uma correlação entre moda mais representativa e moda sustentável?
Não, porque o linguajar da moda sustentável ainda é muito elitista e reside num lugar longe da base da pirâmide. Apesar de existirem exemplos incríveis não acho que são coisas que caminham juntas. Se você tira a lupa da representatividade, imediatamente vira elitista. A periferia sempre fez coisas que o outro lado não vê – e quando vê joga um nome, um conceito, e vira livro best-seller. A gente sempre usou brechó, afinal as roupas são passadas de geração para geração, mas não tinha esse nome. Aqui em casa, dividimos o sinal de internet com três vizinhos, mas isso não se chama economia compartilhada, se chama corre. Hoje, as meninas têm um conhecimento maior do por que isso é interessante. Mas isso nunca foi feito pelo conceito, e sim pelo corre.
Antes, as grandes marcas iam na periferia buscar inspiração, mas não traziam nada em troca para aquela comunidade. Como isso se dá hoje?
Não sei se mudou o suficiente para chegar a grandes marcas. Uma mudança que eu percebo é que está se tornando mais comum parcerias de grifes importantes com pessoas da periferia. Por exemplo, a C&A fez recentemente uma parceria com a LAB, marca do Emicida. A LAB faz roupas caras mas também é válido porque negros não consomem apenas marcas populares. Existe uma vontade maior de se comunicar com a periferia cool. A apropriação ainda existe forte, mas está mais diluída, está mais difícil de identificar, porque a roupagem agora é outra.
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