Notas sobre a sororidade
Como aplicar o conceito de relação de solidariedade, amizade e união entre mulheres se nossa sociedade ainda valoriza relações românticas heterossexuais em detrimento de demais relacionamentos platônicos como a amizade?
20.04.2022 | Por: Maria Clara Drummond
Às vezes penso na história que uma amiga me contou outro dia. Era show do Caetano Veloso, e ela não tinha ingresso. Muito triste, mas esperançosa, disse para seu namorado/marido, com quem está junto há dois anos: “Vou arrumar um jeito de ir ao show!” Finalmente conseguiu um par de ingressos aos 40 minutos do segundo tempo. O namorado já estava a caminho do quarto para tomar banho e se arrumar quando recebeu o aviso: o segundo ingresso seria para sua melhor amiga, não para ele. Afinal, é com a melhor amiga com quem ela dividia há décadas o amor por Caetano. É com a melhor amiga com quem havia vivido tantos momentos memoráveis com aquela trilha sonora específica. O namorado, além de ser um amor recente em sua vida, não era fã de Caetano. Não fazia sentido que ele fosse seu acompanhante naquela noite.
É uma história simples, mas que subverte o pensamento automático de que a relação romântica está numa hierarquia superior às amizades platônicas. Da maneira que ela estruturou sua narrativa, não deixa de ser um plot twist. O namorado levou um susto ao ser excluído na programação; nós, os ouvintes, também. Isso ocorre por conta do que a filósofa americana Elizabeth Brake chama de amatonormatividade: “A crença de que o casamento e o amor romântico têm um valor especial levam a negligenciar o valor de outros relacionamentos afetivos.”
Hoje, muito se fala em sororidade: uma relação de solidariedade, amizade e união entre mulheres que seria imprescindível ao feminismo. Mas precisamos entender como aplicar a sororidade se a união romântica sempre vem em primeiro lugar na sociedade – em especial no caso de mulheres heterossexuais. Mesmo relações não-monogâmicas não oferecem novos horizontes porque ainda assim são centradas no casal. As amizades e casos extraconjugais permanecem em segundo plano.
Bros before hoes (amigos antes das mulheres / piranhas, em tradução livre), dizem os homens, e essa expressão soa realista, a cultura heterossexual masculina favorece a amizade em detrimento do matrimônio. Há inúmeras piadas clássicas carregadas de misoginia que levam a crer que os homens são arrastados para o casamento como quem é recrutado para a guerra – ou, ainda pior, já que nessa mesma cultura a guerra tem ares de glória. “Perdemos um soldado”, dizem os homens sobre o amigo prestes a se casar, ilustrando bem como funciona essa escala de valores. Isso persiste em ambientes mais conservadores mesmo que existam tantos estudos que dizem que quem se beneficia de verdade com o casamento é o homem, não a mulher. O homem que pode focar na carreira sem se preocupar com a organização da casa enquanto a mulher tem sua liberdade limitada.
É possível redimensionar os relacionamentos afetivos, adotando proporções alternativas, ou usar a criatividade para adotar diferentes modelos, que valorizam a comunidade em vez da família nuclear tradicional
Já com as mulheres, a equação se inverte. A mulher solteira é tratada com condescendência mesmo entre círculos feministas. O parceiro não é apenas o objeto do amor romântico, é um símbolo de status. A mulher solteira tem sua vida escrutinada; perguntam, sem cerimônia, sobre a sua vida sexual. A mulher casada tem direito à privacidade que nem sempre é tão benéfica quanto parece: não sabemos se transa, se não transa, se é tratada com respeito, se as tarefas de casa são delegadas exclusivamente a ela, se sofre abuso ou violência doméstica. Há um pacto de silêncio entre mulheres casadas que gera isolamento e, portanto, favorece o patriarcado.
Desse modo, faz sentido que a sororidade seja abandonada toda vez que ocorre um triângulo amoroso entre duas amigas e um homem. A amizade é descartada porque não traz as mesmas recompensas simbólicas que o romance. Pelos filmes, em especial aqueles denominados “água com açúcar”, direcionados ao público feminino, aprendemos que no romance é que está o tempero da vida, as grandes emoções, as histórias memoráveis. Na vida real, o estigma vai além do eventual desconforto em situações sociais, já que outros tipos de relação não recebem as mesmas proteções legais que o casamento. A pessoa solteira é literalmente uma cidadã de segunda classe.
Em artigo para a The New Statesman, a jornalista e ativista inglesa Ash Sakar comenta o sucesso de séries como O Golpista do Tinder. Para ela, “há uma leitura cruel que diz que aquelas vítimas estavam muito dispostas a acreditar que eram as protagonistas de um grandioso romance épico”. Em paralelo, a internet descreve uma crescente atmosfera de ameaça quando diagnostica o que ela chama de “maníaco conceitual”, que pratica love-bombing, gaslight etc. Ash Sakar termina seu artigo com uma conclusão deprimente: o verdadeiro golpe, na verdade, é a heterossexualidade.
O diagnostico parece correto, mas não precisa ser assim. Assim como fez a minha amiga, é possível redimensionar os relacionamentos afetivos, adotando proporções alternativas, ou usar a criatividade para adotar diferentes modelos, que valorizam a comunidade em vez da família nuclear tradicional. Assim, quem sabe, podemos chegar mais próximas da verdadeira sororidade.
Maria Clara Drummond é jornalista e escritora, autora dos romances A Realidade Devia Ser Proibida (Companhia das Letras, 2016), A Festa É Minha e Eu Choro Se Eu Quiser (Guarda Chuva, 2013) e Os Coadjuvantes (Companhia das Letras, 2022)
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