Nua em praça pública

Inaugurada depois de uma campanha de arrecadação que durou quase uma década, a escultura em homenagem a precursora do pensamento feminista, Mary Wollstonecraft, tem dado o que falar. Mas por que a nudez feminina ainda é tão controversa?

24.11.2020  |  Por: Letícia Gicovate

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Nua em praça pública

Entre a realeza, conquistadores, poetas e escravocratas distribuídos entre os espaços públicos de Londres, uma figura feminina emerge nua de uma vulva prateada sobre um pedestal.

Não é uma mulher qualquer, e nem uma escultura qualquer, diz em coro a plateia de descontentes. Trata-se de uma homenagem à mãe do feminismo, a filósofa, escritora e educadora Mary Wollstonecraft.

Mas sim, é qualquer mulher, são todas as mulheres, insiste a inglesa Maggi Hambling, artista comissionada para criar a obra. Reconhecida e reverenciada por seu trabalho disruptivo e controverso, Hambling, no alto de seus 75 anos, parece estar se deliciando com o incêndio que vem causando.

“Nunca se falou tanto em Mary Wollstonecraft”, diz ela, e infelizmente é verdade.

Quase 300 anos separam a autora da Reivindicação dos Direitos da Mulher – obra que atestava que a dita inferioridade feminina não é um fenômeno natural, mas resultado de séculos de privação de educação, espaço e liberdade – da mulher nua na praça.

Nascida em Londres em 1759, Mary Wollstonecraft deu um grande foda-se pra todas as convenções da época. Mãe solo, independente, radical e revolucionária, Mary fundou uma escola aos 24 anos, se mudou pra Paris no auge da Revolução Francesa, amou loucamente e morreu cedo, poucos dias depois do nascimento da sua segunda filha, Mary Shelley – herdeira do brilhantismo e do pé na porta de sua mãe, Shelley um dia cresceu e escreveu Frankstein, mas isso é outra história.

Acima de tudo, Wollstonecraft escreveu um vasto material, que guiou o pensamento das sufragistas e fundou as bases do feminismo moderno.

Fico pensando se ela estaria entre as feministas que cobriram a imagem nua na praça com uma t-shirt, dias depois de inaugurada.

A nudez da estátua em si não é uma novidade. Desde o neolítico encontramos centenas de figuras femininas nuas representando divindades. Na nudez feminina morava a nossa potência, abundância, humanidade e natureza. E por que não, sexualidade. Não havia vergonha, não havia pecado.

O desejo à dominação dos nossos corpos independe do que, ou se, estamos vestidas. Estamos cansadas de saber

Mas para a maioria das críticas à Vênus de Wollstonecraft, entre vozes feministas liberais e claro, conservadores, a estátua da mulher pelada representa um olhar sexista, objetificado e paternalista. Reduz Mary a um fetiche na praça.

Mas por que a nudez minimiza a grandeza de uma mulher?

A mulher, vestida ou nua, foi subjugada, domesticada e violada. O desejo à dominação dos nossos corpos independe do que, ou se, estamos vestidas. Estamos cansadas de saber.

Perdemos a autonomia dos nossos corpos quando perdemos a autonomia sobre a imagem do nosso corpo nu. Se antes nossa nudez representava poder, com o tempo nos tornamos vítimas de nossas próprias formas.

Isso porque a imagem da nudez feminina, assim como toda forma de expressão da mulher, passou a ser representada, moldada e descrita exclusivamente a partir do olhar, do desejo masculino. Enquanto a nudez do homem era heroica, erguida, a nudez feminina era quase sempre atravessada por um “quê” de pecado, ou sedutora ou submetida, nunca dona de si.

A Sculpture for Mary Wollstonecraft representa todas nós, gerações de mulheres despertadas pelo feminismo. E em vez de ser combatida devia ser abraçada como símbolo dessa nova onda, de uma nova era em que finalmente retomamos a propriedade dos nossos corpos, de tudo o que somos.

A mulher nua na praça está erguida, não se cobre, não se esconde, ela desafia. Não olha pra baixo envergonhada e nem nos olhos, lasciva.

“Eu não desejo que as mulheres tenham poder sobre os homens, mas sobre elas mesmas”, é a frase da filósofa cravada na base da escultura.

Mary Wollstonecraft olha pra frente.

 

Letícia Gicovate é editora de conteúdo, escritora e uma das criadoras, ao lado de Alice Galeffi, da revista Nin

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