Nunca houve uma mulher como Hilda

A construção da persona da escritora que ganha cada vez importância no mercado editorial brasileiro e é a homenageada da Flip 2018

25.07.2018  |  Por: Maria Clara Drummond

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Nunca houve uma mulher como Hilda

Fotos de acervo | Instituto Hilda Hilst

Hilda Hilst jamais imaginaria que um dia seus livros de poesia seriam relançados em edições luxuosas com tiragem de até oito mil exemplares – altíssima para o mercado editorial brasileiro. Em vida, Hilda não poupou críticas à sua falta de visibilidade, apesar da unânime aclamação no meio literário. “O escritor deseja ser lido. Sem isso, não adianta dizerem para mim que sou excelente. Quero ser lida no bonde, no avião, no banheiro”, dizia, sem meias palavras.

Como muitos escritores, Hilda Hilst construiu sua persona de forma consciente, como se ela mesma fosse uma personagem – isso é um consenso entre várias pessoas que conviveram com ela ou a estudam. E essa personagem pode ser lida como a poeta genial, a pornógrafa erudita, a mística que falava com os mortos; a mulher sofisticada que usava alta-costura, que tinha muitos amantes, aglutinadora de uma turma de intelectuais e homens belíssimos, e viveu parte da vida cercada de dezenas de cães. “Porém, acredito que é fruto do machismo muito do que se pensa sobre Hilda. É comum retratá-la ora como puta, ora como louca. Hilda não era nenhuma dessas duas coisas”, diz Daniel Fuentes, herdeiro dos direitos autorais e presidente do Instituto Hilda Hilst.

Ela era uma mulher exuberante, rica, inteligente e libertária. As pessoas de ambos os sexos tinham recalque do seu estilo de vida hedonista

Nascida em 21 de abril de 1930, Hilda era filha da portuguesa Bedecilda Vaz Cardoso e Apolônio de Almeida Prado Hilst. Foi uma produção independente, porém reconhecida pelo pai, integrante de uma família quatrocentona de São Paulo. Mesmo com os preconceitos da época, Bedecilda conseguiu matricular sua filha nos melhores colégios da cidade, e Hilda se formou em Direito na Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo. Por conta de seu berço esplêndido, Hilda frequentava a alta sociedade paulistana, convivendo tanto com socialites quanto com intelectuais da época.

Talvez seja por conta desse ambiente conservador de elite que surgiu a fama de mulher de muitos homens. Nos anos 50, não era comum mulher ir sozinha ao cinema, fazer sexo fora do casamento, abordar homens na rua – ela fazia todas essas coisas que são hoje consideradas normais. “Ela era uma mulher exuberante, rica, inteligente e libertária. As pessoas de ambos os sexos tinham recalque do seu estilo de vida hedonista”, conta seu amigo Jurandy Valença. Por exemplo, é célebre a maneira como conheceu seu marido, Dante Casarini, em 1962. Hilda experimentava um vestido numa loja da então sofisticada Rua Augusta. Ao ver aquele homem tão atraente, saiu da loja com o vestido preso ao corpo por alfinetes e pediu seu número de telefone. “Hilda não fazia concessões. E isso inclui frequentar a alta sociedade, porque ela desejava aquele glamour. Mas nem por isso se comportava conforme os ditames estritos daquele núcleo de pessoas”, diz Daniel.

Hilda Hilst com sua melhor amiga, Lygia Fagundes Telles

É difícil estabelecer a veracidade dos dados biográficos da era pré-Casa do Sol, a chácara da família em Campinas para onde Hilda se mudou definitivamente em 1966 para se dedicar à sua obra. Mas a autora adorava contar sobre sua época em Paris. Em entrevista a Fernando José Karl, presente no livro Fico Besta Quando me Entendem, ela discorre sobre o mais famoso de seus causos de juventude: “Eu queria muito conhecer Marlon Brando, achava-o lindo. Então, só para ficar perto dele, tornei-me namoradinha do Dean Martin. Vi-me obrigada a aturar vários dias a bebedeira de Dean… Como ele não me apresentava a Marlon, resolvi ir ao hotel onde ele estava, dei uma linda gorjeta ao porteiro, e perguntei o número do quarto. Cheguei lá, bati na porta, esperei uns dez minutos. Marlon Brando apareceu com um extraordinário robe de seda, acompanhado do ator francês Christian Marquand, que, anos depois, revelou ser seu amante. Eu só olhava para os pés dele e não sabia o que dizer. Aí ele falou: ‘Só porque você é bonita acha que pode acordar um homem a essa hora da noite?’ Ele achou graça, foi educadíssimo, mas eu não consegui entrar no quarto e dormir com ele.”

Outra história notória da mesma viagem ocorreu num bar onde a escritora bebia com os amigos Marina de Vicenzi e Bubby Figueiredo. Como Hilda estava obcecada por Marlon Brando, não deu atenção ao homem da mesa ao lado, que a encarava com interesse e, irritado com sua indiferença, chegou a quebrar o copo de whisky. Uma hora, Bubby percebeu de quem se tratava: o homem mais rico do mundo, Howard Hughes. Arrependida, Hilda tentou voltar atrás, mas o milionário já havia ido embora, num enorme Rolls Royce.

Hilda gostava de homens bonitos. Às vezes, eram homens riquíssimos que pagavam suas contas. Outras vezes, quando seu interesse amoroso não tinha dinheiro, era o contrário, Hilda que os bancava

“Há fotos de Hilda saindo de uma limusine com uma tiara de diamantes na cabeça, em Mônaco. Portanto, é verdade essa vida extremamente luxuosa. Mas ela gostava de alimentar certa imagem sua. Por exemplo, não sei se Marlon Brando estava realmente com um robe de seda acompanhado de um homem. Talvez ela tenha dito isso por orgulho ferido de ter sido rejeitada, o que ela não estava acostumada”, diz Daniel Fuentes.

No entanto, sua grande paixão platônica foi Julio de Mesquita Neto, que era dono do Estadão. Hilda chegou a invadir a redação do jornal à sua procura. Para ele, dedicou um dos seus livros mais conhecidos, Júbilo, Memória e Noviciado da Paixão – título que tem as mesmas iniciais de seu amor. “Hilda gostava de homens bonitos. Às vezes, eram homens riquíssimos que pagavam suas contas. Outras vezes, quando seu interesse amoroso não tinha dinheiro, era o contrário, Hilda que os bancava”, conta Ana Lima Cecílio, que está preparando uma biografia da autora para a Companhia das Letras.

Mil novecentos e sessenta e seis é o ano que marca a mudança de São Paulo para a Casa do Sol. Hilda dizia ter sido inspirada pelo livro Carta a El Greco, de Nikos Kazantzakis, que prega o isolamento para o verdadeiro conhecimento do ser humano: “Eu fiquei deslumbrada com esse livro. Era um homem que lutava com a carne e o espírito o tempo todo. Era isso que eu queria: o trânsito com o divino. Acho que é verdade que qualquer pessoa que deseje realmente fazer um bom trabalho tem que ficar isolada, tem que tomar um distanciamento”, disse.

Hilda aos 27 anos

Todavia, há ressalvas quanto a essa narrativa mística. “Acho que ela simplesmente cansou”, diz Ana Lima Cecílio. A opinião encontra eco em Daniel Fuentes: “Ela precisava diminuir o ritmo daquelas festas todas da sociedade paulistana. Mas isso não significa ficar isolada. Hilda deve ter ficado no máximo 40 minutos sozinha em décadas morando na Casa do Sol.” Entre as suas principais relações estavam Millôr Fernandes, Manuel Bandeira, Carlos Drummond de Andrade, Cyro dos Anjos, Cecília Meireles e Vinícius de Moraes , com quem ela teve um caso. “Hilda era muito curiosa pela vida dos outros. Muito da obra dela é baseada em coisas que os amigos falavam. Ela se alimentava muito disso”, fala Jurandy.

Na Casa do Sol, acentuou-se o lado místico de Hilda. Um dos seus interlocutores para assuntos esotéricos era Caio Fernando Abreu. Chegaram a combinar de se encontrar após a morte de um deles, o que ocorreu, segundo Hilda: “Caio estava com um cachecol vermelho. Era a nossa senha: o vermelho ia significar que estava tudo bem. Eu o abracei muito e disse: ‘Nossa, como você está bonito!’ Mas ninguém acredita.” Um dos episódios retratados em seu diário ocorreu em agosto de 1966. Ela lia um livro quando ouviu chamarem: “Vem aqui fora ou não vai dar mais tempo.” Na entrada principal, a 15 metros do chão, um disco luminoso com uma pirâmide em cima, flutuava, e em seguida se transformou em uma esfera luminosa, e voou para longe.

A política e o feminismo são os pontos mais complexos ao se tratar da personalidade e trajetória de Hilda Hilst.

“Hilda gostava de sublinhar seu lado místico, mas na verdade mesmo esse aspecto dela era cercado de muita racionalidade, com forte viés intelectual. Hilda trabalhava com metas, tinha uma rotina de leitura de oito horas diárias, e entre seus interesses estava a física e a matemática. Ela também tinha muitos amigos que trabalhavam nessas áreas. Era mais uma estudiosa da metafísica do que uma médium”, opina Fuentes.

A política e o feminismo são os pontos mais complexos ao se tratar da personalidade e trajetória de Hilda Hilst. Se perguntassem a ela se era feminista, a resposta possivelmente seria não. Hilda convivia mais com homens do que mulheres, e seus personagens e escritores favoritos eram quase sempre do sexo masculino. Mas a maneira com que agia era naturalmente empoderada – para usar o termo da moda nos dias atuais. Não só na naturalidade com que lidava com seu desejo sexual, não se reprimindo em nenhum momento apesar da época e do ambiente conservador em que vivia, mas também na vida cotidiana: era Dante quem sempre cozinhava e cuidava da casa, e mesmo depois que os dois se separaram como casal, ele continuaram morando juntos como amigos.

“Mas eu creio que ela era uma feminista anárquica. Ela era muito à frente do seu tempo pelas suas posturas políticas, éticas e sociais. É emblemático ela não querer ter filhos e não se envolver com tarefas domésticas. Quem cuidava da manutenção da casa no dia-a-dia eram seus amigos e o Dante”, opina Jurandy Valença.

Hilda em 1952

Sua autoconfiança e empoderamento fora do comum talvez tenham sido os responsáveis pela fama do seu temperamento forte e explosivo. Daniel Fuentes – que frequentou a Casa do Sol até a morte de Hilda, que era muito amiga de seus pais, José Luis Mora Fuentes e Olga Bilenky – acredita que esse mito é justamente do machismo. “Se fosse um homem fazendo as mesmas coisas, ninguém falaria nada. Em todos os meus anos de convívio com Hilda, nunca presenciei nenhuma briga”.

Apesar de ter recebido refugiados políticos na Casa do Sol durante a Ditadura Militar, Hilda não era uma mulher politizada, tampouco de esquerda. Gostava de Lênin mas chegou a defender Fernando Collor e Orestes Quércia. Em suma, se interessava por política numa dimensão ampla, mas não em sua vertente institucional e partidária. São em suas peças de teatro, escritas durante os anos de chumbo, que a vertente política se mostra mais nítida, e possivelmente esquerdista. “Todavia, acredito que há poucas coisas mais corajosas politicamente do que suas críticas ao mercado editorial brasileiro”, julga Fuentes.

Ele se refere sobretudo à época da sua trilogia erótica lançada no início dos anos 90. Inconformada com sua ausência nas livrarias, Hilda lançou O Caderno Rosa de Lory Lamby, Contos d’Escárnio: Textos Grotescos e Cartas de um Sedutor, além dos poemas satíricos Bufólicas. Hilda dizia que escreveu Lory Lamby, o mais forte e crítico dessa leva, rindo consigo própria. “É unânime entre os relatos o excelente senso de humor de Hilda. Mas é muito difícil para mim conciliar essa imagem com os textos que ela escrevia”, confessa Ana Lima Cecílio. Para Daniel Fuentes, esse viés cômico pode ser melhor visto nas crônicas que ela escreveu na última década de sua vida.

Ainda cedo, Hilda foi considerada uma das grandes escritoras brasileiras, ao lado de cânones como Guimarães Rosa e Clarice Lispector. Mas o que ela desejava era a fama. “Hilda, com toda sua sabedoria, às vezes parecia não entender como funciona o mundo, pois espantava-se que seus livros não vendessem, logo num país que lê tão pouco como o Brasil”, acredita Ana Lima Cecílio.

Agora, com toda a pomba dos lançamentos da Companhia das Letras, as reedições da Globo Livros,  e a homenagem da Flip, tudo indica que vêm por aí reimpressões que levarão sua literatura, que sempre foi considerada hermética, para um público cada vez mais amplo. “Talvez daqui a 100 anos alguém me leia. Mas eu não tenho esperança”, afirmou Hilda durante uma entrevista. Dessa vez, ela estava errada.

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