O boy lixo na cultura pop

Quem são os embustes mais icônicos da literatura, do cinema e da televisão e por que cafajestes e psicopatas não contam

16.10.2019  |  Por: Maria Clara Drummond

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O boy lixo na cultura pop

Já faz alguns anos que o tema da vez é masculinidade tóxica – ou, para usarmos uma linguagem mais coloquial, o boy lixo. Em tempos de #MeToo, é possível enquadrar o boy lixo em praticamente qualquer obra de ficção contemporânea que contenha traços de romantismo. Narrativas ficcionais são construídas a partir de conflito e drama – e, convenhamos, bons rapazes não são exatamente motores eficazes que nos levam a continuar virando as páginas (ou manter os olhos fixos na telinha).  

Primeiro, vamos esclarecer uma coisa: boy lixo não é a mesma coisa que homem galinha – por essa razão, por exemplo, o Joey de Friends não se enquadra, e está ausente de nossa lista. O boy lixo tampouco é um namorado que parece legal mas é um psicopata – e aí é caso de cadeia mesmo! Entre eles, (cuidado, spoilers!!!) Joe, do seriado You, da Netflix; David MacCall, personagem de Mark Wahlberg no filme Fear, de 1993; Jason Dean, bad boy interpretado por Christian Slater em Heathers, de 1989; ou Rose Armitage, a girl lixo de Corra!, filme de 2017. É comum que o boy lixo seja mestre em manejar doses consideráveis de manipulação e chantagem emocional, mas é variável o grau de babaquice. Não raro, há moralidade volúvel, muitas nuances envolvidas, quase uma questão de ponto de vista. Caso contrário, não ficaríamos tanto tempo atreladas a esse tipo de sujeito, e sim o dispensaríamos de imediato. 

Às vezes, a narrativa ficcional perdoa essas atitudes em prol do par romântico. Em outros momentos, elas são até vistas como um grande gesto de amor, mesmo que prejudique a vida da mulher amada. Hoje, há narrativas mais autoconscientes em relação a esse comportamento, que comentam, de forma ativa, a dualidade desses caras que amamos odiar, como o livro Os Casos de Amor de Nathaniel P., da americana Adele Waldman – em Nova York, Nathaniel P. tornou-se um sinônimo desse tipo de sujeito – ou o recente lançamento nacional Consolação, de Carlos Messias (que aposta na pegada Pornopopeia, de Reinaldo Moraes), cujo personagem é assumidamente um lixo. 

Sem mais delongas… A LISTA (ufa!)! A seleção abaixo analisa seis exemplos de boy lixo que estão presentes na cultura popular: dois da televisão, dois da literatura, dois do cinema. O critério principal foi a possibilidade de mencionarmos esses personagens em uma conversa durante um jantar com as amigas ainda este mês.  Ou, em outras palavras, rapazes que a própria internet elegeu – portanto, em relações a discordâncias, por favor não matem a mensageira. Voilà

1) Mr. Big, Sex and the City: Atire a primeira pedra quem nunca se referiu a um amante meio mal resolvido por esse nome. Mr. Big virou praticamente parte do léxico dos relacionamentos contemporâneos. Ele diz eu te amo, depois some. Tem medo de compromisso, mas não hesita em se casar com uma mulher muito mais jovem, inexpressiva. Carrie Bradshaw, seu par romântico durante seis temporadas e dois filmes, passou por tudo isso, e muito mais. Candace Bushnell, autora da série, admitiu que na vida real seria impossível um final feliz, mas o casal havia se tornado muito icônico, tornando inevitável a reunião da dupla, no último episódio.  Desde o encerramento de Sex and the City, o personagem passou por duas fases de revisionismo histórico: na primeira, ele deixou de ser o príncipe encantado que toda garota almeja encontrar para se transformar um cafajeste de primeira ordem; na segunda, ele foi redimido, pois afinal sempre deixou claro que não buscava um relacionamento sério – e alguns até ousam louvá-lo por sua paciência diante os surtos de neurose da nossa Carrie. Mas as controvérsias só evidenciam que sim, trata-se do maior representante do que entendemos como boy lixo. 

2) Don Draper, Mad Men: Muito já foi dito sobre o “madonna-whore complex” que permeia toda a vida amorosa desse publicitário. Don Draper é filho de uma prostituta que morreu durante o parto, foi criado por um pai bêbado e uma madrasta evangélica cruel, e passou sua adolescência num bordel. Esse histórico é usado para justificar sua dificuldade de conexão com as mulheres com quem se relaciona. Por um lado, suas amantes são mulheres fortes, complexas e inteligentes. Por outro, nos seus dois casamentos há uma expectativa de submissão. Betty Draper, a ex-modelo formada em antropologia, é praticamente Stepford Wife. Já Megan, que era sua secretária e baby sitter, apesar de ambiciosa profissionalmente, tem a ingenuidade de quem é 15 anos mais jovem. Don Draper é irresistível: bonito, inteligente, rico, sexy, bem-sucedido – e, ao que parece, bem dotado. (Tenho uma teoria de que o único homem que tem as características para suplantar Mr. Big na mente obsessiva de Carrie Bradshaw é Don Draper!) Mas, ao longo dos dez anos da série, as únicas mulheres que conseguem chegar perto do seu coração são aquelas com quem ele mantém amizades platônicas, como Peggy Olson. Segundo Susan Miller, que fez o mapa astral do personagem, a culpa é da lua em gêmeos, um signo de ar, superficial e difuso, na casa 8, que comanda o sexo. Ou seja, Freud explica Don Draper, mas os astros também!

3) Nate, O diabo veste Prada: Pouco tempo atrás, a internet ficou em alvoroço quando tirou do baú uma nova perspectiva sobre um personagem até então ignorado desse blockbuster de 2006 – Nate, o namorado da protagonista Andy Sachs. A tese era seguinte: Nate seria o verdadeiro vilão do filme porque desencorajava a sucesso da sua namorada a ponto de achar que seu aniversário era mais importante que a carreira de Andy. É impressionante a quantidade de debate que pode acalentar um personagem com tão pouco tempo de tela. E, mesmo assim, ignoram que trabalhar com moda nunca foi o desejo de Andy, ainda por cima em condições tão degradantes, com uma chefe que sente prazer em humilhar funcionários. Minha tendência é concordar com o artigo do brilhante Acauam Olivera: a má compreensão do feminismo pode ser conservadora a ponto de os jovens tornarem-se #TeamMirandaPriestley (e olha que o filme deixa bem claro sua tirania!). Calma, gente, é um automatismo considerar positiva a existência de qualquer mulher empoderada, e às vezes o boy não é necessariamente lixo, é só fraco mesmo.  

4) Christian Grey, Cinquenta tons de cinza: Eis um filme com inúmeros pecados, tais como naturalizar relacionamentos abusivos, tratar práticas sexuais comuns como fetiches exóticos, e ao mesmo tempo patologizar o BDSM. Qualquer mulher minimamente letrada no feminismo olharia para o protagonista dessa trilogia e entenderia o recado: é para fugir! Christian Grey isola Anastasia, controla sua comida, faz ameaças de violência física, há várias ocasiões em que ele ignora a noção de consentimento, e é basicamente um stalker. Seria o enredo de um filme de terror caso não fosse uma comédia pastelão involuntária. No entanto, muitas outras ficam seduzidas por esse combo beleza-riqueza-poder, presente em diversos boy lixos do universo ficcional (como Mr. Big e Don Draper). O sucesso do filme é explicado quase como uma fantasia regressiva da mulher moderna que vive a rotina exaustiva de trabalho e filhos: a súbita aparição de um príncipe encantado completamente apaixonado que decide tomar para si as decisões de vida da amada. Bem, se a ideia é essa mistura de escapismo com passividade, uma boa noite de sono continua a melhor saída. 

5) Robert, Cat PersonEm 2017, a internet entrou em alvoroço com o relacionamento errático de Robert e Margot. O conto de Kristen Roupenian, publicado pela New Yorker, foi a ficção mais lida da revista naquele ano (por aqui, saiu em livro pela Companhia das Letras). Até a última linha do texto, a gente até achava que ele era um cara legal, que tinha um interesse genuíno na narradora, mas, infelizmente, não era muito bom de cama. Várias mulheres ao redor do mundo se identificaram com as sensações de Margot: conhecer alguém legal, trocar mensagens espirituosas na internet, um encontro meio esquisito, o medo de ser assassinada, o sexo desastroso, quase ridículo, com conexão nula. No final, Robert não precisou de mais que duas palavras para provar que, de onde menos se espera, daí é que não sai nada. Robert, de fato, era um recalcado, neurótico, covarde, babaca e misógino. 

6) Nino Sarratore, tetralogia napolitana de Elena Ferrante: Eis um exemplo do esquerdomacho before it was cool. Conhecemos Nino durante sua adolescência e juventude, e nos apaixonamos por ele junto com a Lenu. Afinal, é deveras impressionante existir um rapaz feminista e de esquerda durante o pós-guerra na conservadora Nápoles. Mas, aos poucos, Nino vai mostrando sua faceta cruel, a ponto de inspirar o Tumblr Fuck Nino Sarratore. Em rara entrevista, Elena Ferrante responde sobre o processo de criação do personagem: “Eu quis descrever os efeitos da superficialidade quando combinada a uma boa educação e a uma inteligência moderada. Nino é um homem inteligente, mas superficial, um tipo de homem com o qual estou bastante familiarizada.” Infelizmente, nós te entendemos, Elena. 

 

Maria Clara Drummond é jornalista e escritora, autora dos romances A Realidade Devia Ser Proibida (editora Companhia das Letas, 2016) e A Festa É Minha e Eu Choro Se Eu Quiser (editora Guarda Chuva, 2013)

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Uma resposta para “O boy lixo na cultura pop”

  1. Que ótica maravilhosa. Adorei repensar os filmes e ver o quanto – de fato – esses boys não valem nada.

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