O choro indomável

Quando uma avalanche de lágrimas em plena seção eleitoral faz lembrar de outros episódios em que a tristeza chegou como um balde na cara

30.10.2018  |  Por: Isabel Guéron

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O choro indomável

Mike Ko | Unsplash

Domingo eu chorei um choro desconhecido, indomável. Desses que assustam a gente porque vêm sem avisar, feito um balde na cara. Outras vezes isso já tinha me acontecido. Isso de me deparar com um choro que não parece meu.

Quando vi O Campeão, do Franco Zefirelli, foi a primeira vez que chorei assistindo a um filme. Acho que era uma Sessão da Tarde, ou um sábado meio morto, não sei. Na minha memória é nítida a estranheza de estar ali de pé aos prantos, diante da televisão de 14 polegadas. E enquanto aquele menino lourinho soluçava diante do pai morto, eu me olhava no espelho da penteadeira que ficava atrás da TV para me ver soluçando igual a ele. Chorando de verdade mesmo sabendo que era de mentira o filme!

Alguns anos depois, já criança leitora, catei um exemplar de Meu Pé de Laranja Lima na estante de casa. Eu ainda não tinha ido muito além do Sítio, literatura pra mim era aventura, fábula, no máximo alguns perigos. De repente eu ali envolvida com aquele menino sofrido e me acontece uma tragédia daquelas no meio da história. Logo com o Portuga! Eu que estava deitada na minha cama de colcha amarelinha, levantei dilacerada com aquele acontecimento, caminhei em choque até o quarto dos meus pais chorando mais do que quando rasguei o joelho andando no carrinho de rolimã amarrado na mobilete.

– Eu estou chorando por causa do livro – contei indignada. – Ninguém me avisou que era triste assim!

Uma vez, quando me trocaram de escola. Eu não queria de jeito nenhum. Eu adorava meu colégio alternativo, com aulas de educação física no Parque Lage e festa do folclore no final do ano. Mas acabaram me mudando mesmo assim. “Porque está tudo meio difícil e um dos trabalhos do papai acabou. Nessa escola você vai ter bolsa, minha filha. E se você não gostar a gente promete que no ano que vem pode voltar.”

Me resignei. Na segunda feira depois do carnaval, eu estava naquele pátio imenso de crianças desconhecidas e uniformizadas. Faltavam ainda uns cinco minutos para o sinal de entrada e eu tentava me encaixar numa fila correspondente à minha nova turma. Uma mulher de cabelos lisos e alourados se aproximou sorridente, como quem vem me ajudar a achar o meu lugar naquela pequena multidão. Ela então, delicadamente, puxou do bolso uma tesoura. Disse que no primeiro dia perdoava, mas na próxima vez ia cortar a bainha da minha saia curta. E que minhas meias não poderiam ficar assim, enroladas na canela. Fiquei muda, sem reação. Senti que minhas bochechas ficaram quentes. Suspendi as meias e segurei o choro na garganta com força. Não foi fácil segurar aquele choro assustado, até hoje me lembro do esforço.

É horrível ter que segurar. Mas tem hora que a gente não quer chorar. Na adolescência foi uma luta. Eu querendo ser adulta e aquela revolução hormonal me jogando nas situações mais desconfortáveis. Como chorar no meio da minha fala, eu de representante de turma no conselho de classe. Na frente de todos os professores. Ou quando minha professora de literatura mais querida pediu demissão e eu quase subi na mesa falando “Oh Captain, my Captain”, mas não consegui e só chorei quieta.

E domingo eu não segurei. Depois do café da manhã fui votar com a minha mãe. Ela não precisa mais, mas faz questão. Eu queria ir caminhando, mas pra ela a caminhada é longa, então apanhamos um táxi. Dessa vez foi mais rápido, não teve fila. Ela votou primeiro e sentou-se no banco do pátio da escola onde a gente vota, pra me esperar. E então fui eu. Dei bom dia, meu documento original com foto e meu título com um clipe segurando vários daqueles papeizinhos que comprovam que eu votei nas eleições passadas. Esqueci de tirar os antigos, comentei. A mesária me olhou, levantou as sobrancelhas, ensaiamos um leve sorriso cúmplice. Botei meu indicador na biometria, tive que tentar o polegar. Entrei na cabine, votei, assinei e saí. Minha mãe sentadinha, me esperando.

E a avalanche me encontrou naquele pátio da décima sexta zona eleitoral, na seção 184. Sentei e chorei feito criança. As águas do mês inteiro que estavam presas para dar lugar a um otimismo que eu mastiguei e engoli devagarzinho, feito o último biscoito do pacote. Uma tristeza maior que minha capacidade de controlar.

– Mãe, eu chorei assim quando vi a Guernica do Picasso ao vivo – comentei.

E minha mãe, que há tempos não cumpria essa função de me dar colo, me consolou.

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