O Dia dos Namorados (ou a loja de perfumes)

Sobre a origem da data romântica, que no Brasil é a terceira melhor para o comércio, e como lidamos com ela dependendo da fase – do encantamento da adolescência a momentos de crise conjugal

12.06.2019  |  Por: Isabel Guéron

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O Dia dos Namorados (ou a loja de perfumes)

Ilustração: Anália Moraes | Piscina

Ela vinha andando pela rua distraída. Estava recém-liberta daqueles enjoativos túneis de ovos de páscoa e já tinha disfarçado a tristeza fútil de ter ficado sem presente no Dia das Mães, quando percebeu outra ordem vinda das vitrines: o Dia dos Namorados. Ai que coisa irritante isso de determinarem o sentimento adequado do mês! Não bastasse a obrigação de confraternizar no Natal-pós-eleições, agora vinha a data romântica em plena crise conjugal. Ela achou graça desse pensamento, e seguiu prestando atenção nas lojas: corações vermelhos, caixas de bombom em promoção, duplas de perfumes e um só preço, menu especial com uma garrafa de vinho de brinde.

Foi bem naquela loja de perfume que aos 13 ela comprou para si própria um vidro de Lavanda Pop. Porque na adolescência era um martírio não participar dessa data inventada. Dia 12 de junho servia para esfregar na sua cara aquele corpo ainda indefinido, sem peitos. Os cabelos cheios demais e aquele par de cambitos branquelos que não sabia se queria usar mini-saia ou brincar de pique. Para lembrar sua falta de coragem em se declarar para seu melhor amigo. Mesmo depois que beijou na boca numa brincadeira de salada mista, ter um namorado era uma coisa muito distante. Um divisor de águas, um ponto final naquela
infância teimosa.

Seguiu pela praça e parou na faixa para atravessar no sinal. O filho passou de bicicleta, e ela, ainda sugestionada pelas vitrines, lembrou de quando o menino, de supetão, disse que estava namorando. Contou assim, com cara de quem não é mais criança, com jeito de quem agora tinha outros assuntos. E ela, pega de surpresa, respirou fundo para disfarçar o susto e respondeu plácida, o coração aos pulos: “Que legal, filho!” E deram um abraço bem apertado; como ele estava grande! Naquele dia sentaram para almoçar os dois, o garoto com um sorriso colado no rosto, ela reparou. “Até já mudei meu status no Face”, ele completou.

Quando o sinal abriu já tinha perdido o menino de vista. Atravessou a rua e seguiu. Entrou em casa intrigada com a imposição romântica e resolveu pesquisar a data. Google, claro. Nos EUA e na Europa os namorados comemoram o dia de São Valentin, um padre romano do século III, condenado à morte por defender o casamento quando o então Imperador Claudio II resolveu proibir o matrimônio, por acreditar que soldados casados tinham rendimento inferior (nessa hora ela pensou que poderia existir também o Imperador Claudio’s Day, quando as pessoas comemorariam a alegria de viver consigo, apenas). Valentin celebrava matrimônios escondido, e quando descoberto foi preso e condenado à morte. E se apaixonou pela filha do carcereiro. Antes da sua execução, lhe enviou um bilhete de amor assinado “seu Valentin”, no dia 14 de fevereiro. Mas aqui, nos trópicos, jamais poderíamos ter um Dia dos Namorados no mês do carnaval!

No Brasil a data foi criada pelo publicitário João Doria (sim, pai do Ken, prefeito de São Paulo) para impulsionar o comércio num mês considerado fraco. Sem um fato, um motivo histórico que fosse pra dar um sentido para além das vendas. Jogaram a data na véspera do dia do santo casamenteiro e desde os anos 50 essa data pegou por aqui. Com slogans como “Não é só com beijos que se prova o amor” e “Amor com amor se paga”, a estratégia foi um sucesso e atualmente o Dia dos Namorados é a terceira melhor data para o comércio, atrás apenas do Natal e Dia das Mães.

Uma vez tinha caído nesse clichê, de comemorar a data junto com todos os casais da cidade. Passaram por três restaurantes, todos com fila na porta. O maître de um dos estabelecimentos disse que as reservas estavam fechadas há três dias, que no amor deve haver algum planejamento. Foram embora pra evitar discutir relação na fila. Decidiram por um italiano charmoso que nem parecia que era dentro de shopping, pois ficava no primeiro piso, perto de um belo jardim. Estava cheio mas o simpático garçom os levou a uma “mesinha especial”. A tal mesa estava 15 centímetros distante da dupla ao lado, e eles passaram a noite participando involuntariamente das questões daquele casal, que iria se casar numa grande festa dali a três meses. Os dois brigavam por cada detalhe, desde o sabor do bolo até a cor da gravata que ele queria usar, passando pela lista de convidados “que ele não tinha nada que ter liberado pra mãe chamar quem quisesse”. Era uma casal quase separando num jantar de Dia dos Namorados, por causa da sua festa de casamento. E eles riram daquela “noite-roubada” quando chegaram em casa, bem tarde, um pilequinho delicioso, as crianças dormindo.

E ela sentiu saudades de rir à toa, só os dois. Agora no meio daqueles boletos, daquela administração, depois de tanto tempo. Desencontrados que estavam nos seus planos, resolvendo cada um dentro de si aquilo que não identificavam. Tinham se perdido dentro da própria casa. E ela, ainda sem saber direito por que, decidiu. Tomou um banho, foi para a rua, refez o percurso e entrou na loja de perfumes: comprou um frasco para si própria. Depois passou na loja de vinhos e levou duas garrafas. Para beber com ele, bem tarde, a casa em silêncio. Ou na rua, trôpegos, caminhando na beira da sarjeta, rindo bem alto. Aí eles iam
sentar no meio fio, bebendo no gargalo, e ela ia perguntar: quer namorar comigo? No amor deve haver algum planejamento.

 

Isabel Guéron é atriz e escritora

2 Comentários

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2 respostas para “O Dia dos Namorados (ou a loja de perfumes)”

  1. Francinete Gonçalves disse:

    Amei Isabel!!!!
    Com certeza muita gente se identifica!!!

  2. @asfolch disse:

    Eu adoro os textos da Isabel. Sensíveis, humanos e deliciosamente divertidos!

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