O feminismo negro e outras vertentes

Feminismo negro, mulherisma africana, pan-africanismo, trasnfeminismo: sobre a importância de conhecer, se identificar e se aprofundar nas lutas

26.11.2020  |  Por: Flora Babylon

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O feminismo negro e outras vertentes

Olá! Eu me chamo Flora. Sou uma mulher trans negra e fui convidada pela Hysteria pra falar um pouco sobre quem sou e as pautas que carrego.

Logo de início, o meu contato com o feminismo me empolgou. Afinal, foi a primeira vertente de luta e ativismo centrada em mulheres que eu conheci. Mas em algum ponto eu comecei a perceber o quanto muito daquilo não fazia sentido pra minha realidade. Nesse período, se instalaram em mim várias dúvidas relacionadas à invalidação, à luta e a diversos temas que eu pude esclarecer futuramente. 

Foram minhas amigas que me explicaram do que se tratava o feminismo negro, que, depois, fui estudar mais a fundo. Embebidas de “feminismo”, nós tendemos a acreditar e pensar o feminismo negro como apenas um “recorte”, um pedaço necessário de dentro do feminismo, uma borda. Quando, na realidade, é uma teoria própria, com suas autoras, pensadoras e filósofas em diversas partes do mundo – inclusive aqui, no Brasil. 

Esse contato veio como um fôlego de entendimento, trazendo uma correlação entre o que eu já vinha questionando: por que eu não me sentia contemplada pelo feminismo?  Pra começar, é essencial entender que esse vazio que costuma preencher os corpos das mulheres, principalmente negras, não é um acaso ou delírio. Afinal, estamos falando de uma universalidade que se propõe a contemplar todos os corpos, mas não o faz¹, o que na realidade acontece com todas as teorias que se propõem universais.

Isso porque essa suposta universalidade diz respeito a pessoas brancas. Isso vem sendo debatido por autoras negras como Marimba Ani e Grada Kilomba, e falado por Sojourner Truth há muito tempo. O “feminismo” questiona o “feminismo negro” se valendo da ideia de que não são necessárias pautas específicas, afinal, todas as mulheres são iguais. Enquanto isso, mulheres negras vão sendo negligenciadas, e mulheres trans, em alguns casos, sequer consideradas como parte do movimento.  

As mulheres negras pensam o feminismo a partir de um ponto de impacto direto com o colonialismo e com as teorias que rejeitam as pluralidades dessas mulheres que, sim, são atravessadas pela questão de gênero constantemente e carregam questões de raça que também lhe foram impostas e as desumanizam a todo custo. O colonialismo é essa ferida violenta irracional, esse assassinato de tudo o que conhecemos por Humanidade, por paz, que não existe desde que o homem branco colonizador saiu em caravelas e infectou povos originários de Abya Yala, e povos pretos do continente africano, das mais diversas e nojentas formas.

Enquanto o feminismo branco se dirige de forma negligenciada às mulheres negras, negando as suas questões, esse mesmo se dirige às mulheres negras rejeitando-as desse lugar de mulher. Olhando ainda pra transgeneridade, há um “não-lugar” num sentido de exclusão e não-pertencimento, um lugar de invalidação da própria identidade como mulher. O poder nunca esteve nas nossas mãos. 

Uma coisa pensada pelo transfeminismo, por exemplo, é que esses corpos foram negligenciados por algumas teorias e tratados de forma rasa por outras². Falando de outros caminhos e existências muito anteriores à academia, nós nos deparamos com diversos modelos de sociedade e realidade pensadas para pessoas trans e pessoas trans negras de uma maneira não pautada em dor e sofrimento, chegando até mesmo ao sagrado muito presente em algumas culturas³. O lance de todas as reivindicações anteriores ao colonialismo é fazer um resgate de modelos sociais a solucionar e entender os problemas, justamente das pessoas pertencentes a essa cultura, que a todo momento se encontram em um “não-lugar” de vazio epistemológico existencial. 

Ainda somos uma sociedade permeada pela raça. É importante ressaltar que não faz muito tempo, sequer se admitia o problema do racismo

Surgem, então, diversas teorias que se ocupam desse resgate, como a filosofia africana em si, o mulherismo africana e o pan-africanismo, que centram suas pautas e pensam a sociedade a partir da raça para compreender as diversas problemáticas e suas implicações e cruzamentos em relação a outros fatores também importantíssimos, como gênero e classe. O que muda é o centro, o ponto de referência e de partida. Ainda somos uma sociedade permeada pela raça. É importante ressaltar que não faz muito tempo, sequer se admitia o problema do racismo⁴.

Ao olhar para outras formas desses pensamentos emancipatórios, entendemos diversas questões que sempre foram menos assistidas e o porquê disso. Uso de exemplo o mulherismo africana, o qual admiro muito e levo muito em consideração. Não dá pra desvincular uma opressão transfóbica do racismo, pois pessoas negras foram atravessadas pelo colonialismo. O mulherismo, justamente, parte da ideia de que tudo isso está interligado. 

O problema é claro: colonialismo, capitalismo, corpos sendo amontoados e assassinados. Mas e a solução? Excluir essa ideia de uma universalidade, em que o problema é reduzido de forma a apenas um fator, quando sabemos que existem vários agindo contra nossos corpos. 

O que acontece muito é que grupos da oposição acham que essas lutas são um espetáculo, ou que são agradáveis a nós. E sim, muitas delas são acolhedoras e incríveis, mas nossas lutas não são apenas sobre isso. Os povos oprimidos deste país duramente resistem a políticas diárias de morte. Estou falando de assassinato às 12h na porta de um hospital e às 19h no chão de um supermercado. Esse país não respeita nossos corpos. Esse país não respeita corpos de mulheres, sejam eles como forem. Todos os dias enterramos irmãs mortas pelo feminicídio, pelo racismo, pela transfobia. Então, o momento não é de discutir qual delas é menos mulher ou não. 

Por fim, eu me sinto na obrigação de dizer o quanto eu, Flora, considero e penso e todas essas teorias e vivências de extrema importância na minha vida. Afinal, o Ocidente se coloca como competidor, cada um precisa ser melhor, cada teoria ocidental precisa superar, refutar e contradizer outra ou seus conceitos. Mas fora desse eixo encontramos mais do que uma ilusão de unidade total ou verdade absoluta e material e, sim, um pluriverso de questões que pensam a sociedade como um todo a partir de várias perspectivas. Assim, com passos calmos, podemos respeitar os conhecimentos ancestrais, as pensadoras de dentro e fora da academia. 

Cito ainda Kimberle Crenshaw5, que diz que a mulher negra, e aqui adiciono trans, interpretando minha realidade, se encontra em uma encruzilhada de vários caminhos. A única maneira de me salvar, de curar meu corpo ferido nessa encruzilhada colonial, é compreender que tenho à disposição tudo o que já foi criado e pensado pelas minhas irmãs, e também por mim, que pensa o meu corpo não só pela raça, não só pelo gênero, mas também por tudo o que me compõe. Considerando as feridas e as balas alvejadas contra mim, por meio dessa ferramenta interseccional, posso proteger as minhas irmãs e o meu povo.

Ouçam as mulheres6. Ouçam narrativas plurais, daquelas mulheres que sempre lutaram por nós em várias situações ao longo da História. As condenadas por bruxaria, em sua maioria mouras, indígenas, negras. A mudança a que Ângela Davis se refere quando diz “quando a mulher negra se movimenta toda a estrutura da sociedade se movimenta com ela” acontece porque elas apoiam-se umas nas outras, lendo, votando, gritando, saindo na rua, se desvencilhando de uma narrativa de ódio a quem já é odiado.

Por fim, àqueles que me acompanharam até o fim deste texto, permaneçam fortes, mas também se mantenham humanas. Vocês não precisam esconder o que sentem, não precisam chorar escondidas, ter receio de ficar com raiva. Vocês precisam escutar e se unir umas às suas e aos que te apoiam e seguir com os pés firmes. E nas palavras de Brisa Flow: fiquem vivas, fiquem juntas.

Agradeço por poder contribuir com a produção e o pensamento de luta feminina, e saúdo minhas ancestrais agradecendo pela centralidade em meus pensamentos, e por se fazer ouvir as vozes das minhas, nossos passos vêm de longe, asé!

  1. “E eu não sou uma mulher?” – livro de Bell Hooks tecendo uma crítica ao feminismo e suas contribuições à mulher negra. Deixo também o discurso de Sojourner Truth, cuja a fala inspirou o livro.        https://www.google.com/amp/s/www.geledes.org.br/e-nao-sou-uma-mulher-sojourner-truth/amp/  
  2.  Aprofundo um pouco mais esse pensamento durante uma live crítica ao “sagrado  feminino” que você pode assistir aqui: https://www.instagram.com/tv/CG0xU9OHuFt/?igshid=icnkogmysyzp
  3. Nei Lopes discorre melhor sobre isso no “Kitabú, o livro do saber e do espírito negro-africanos”, que chegou até mim por um trecho traduzido e disponibilizado no instagram de Anin Urasse, Irmã pesquisadora e mulherista africana https://www.instagram.com/p/CHSouC3pknP/?igshid=k9yadf4du18z
  4. “Se você enfiar uma faca de 22 centímetros em minhas costas e puxar quinze centímetros para fora, não haverá progresso. O progresso vem quando se cura a ferida que o golpe fez. Eles nem começaram a puxar a faca. Eles não admitem que a faca está lá.” – Malcolm X
  5. Kimberle Crenshaw TEDX sobre Interseccionalidade:         https://youtu.be/vQccQnBGxHU  
  6. Recomendo aqui autoras como Marimba Ani, Ângela Davis, Kimberle Crenshaw, Patrícia Hill Collins, e pesquisadoras como Lai Munihin, Jé Hamagay, Nailah Neves, Carla Akotirene, dentre tantas outras.

 

Flora é uma artista visual que busca representar e trazer em sua arte parte do que a compõe em si e no mundo. Estudante e escritora, também incorpora o ativismo pelos direitos das pessoas negras, mesclando raça, gênero e transgeneridade em seus textos e lutas, afiando espadas como uma espadachim do gueto

 

 

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