O futuro do filme de amor
O objetivo não é mais fazer voar, e sim manter nossos pés no chão: por que estamos consumindo (e adorando consumir) realismo em detrimento da fantasia, como na série 'Cenas de um casamento' ?
10.12.2021 | Por: Maria Clara Drummond
Os Beatles diziam que “All you need is love”. De fato, o amor talvez seja o maior de todos os temas: é existencial, atemporal e universal. Mas a fórmula clássica dos filmes de amor no cinema ficou um tanto datada: os gestos grandiosos, o drama exacerbado, o assédio disfarçado de romantismo, a heteronormatividade, a branquitude, os papéis de gênero retrógrados. Não raro, a mulher abandona seus sonhos profissionais em prol de um grande amor. Durante os anos 90, quando acreditavam que vivíamos no pós-feminismo, e que a igualdade havia sido conquistada, a protagonista clássica dos filmes românticos era a mulher bem-sucedida profissionalmente que ainda assim sentia um grande vazio pela falta de um homem que a amasse. A mensagem era clara: você pode ter tudo, mas sem amor, você não tem nada.
Em 2021, a gente realmente ainda acredita nisso? O filme de amor dramático, com amantes acometidos por doenças incuráveis ou separados pela tragédia da guerra, soa cada vez mais cafona, longe da realidade da mulher moderna. A comédia romântica, então, nem se fala. “Considero as comédias românticas um subgênero da ficção científica, em que o mundo opera de acordo com regras diferentes do meu mundo humano normal. Para mim, não há diferença entre Ripley de ‘Alien’ e qualquer personagem de Katherine Heigl. Eles são igualmente implausíveis”, escreve a atriz e roteirista Mindy Kaling para a New Yorker.
O centro do filme de amor é o casamento – talvez não o casamento literal, mas ao menos simbólico, a promessa de uma união monogâmica a longo prazo. Jane Austen popularizou em seus livros o “marriage plot” – recurso popular até hoje em filmes românticos. Todas as suas obras terminam em casamento, ainda que a própria autora nunca tenha se casado. Talvez esse seja um indicativo da crise do filme romântico: as novas gerações estão se casando cada vez mais tarde, talvez nunca, e os mitos acerca da maternidade estão aos poucos sendo quebrados.
Estamos, enfim, entendendo que a união monogâmica tradicional com o ser amado talvez não seja aquilo que falta para a felicidade plena das mulheres, e sim o contrário. A pesquisadora britânica Kate Lovett, do Royal College of Psychiatrists, chegou à conclusão de que homens solteiros, viúvos e divorciados têm mais probabilidade de desenvolverem depressão, mas entre as mulheres a situação se inverte: as casadas são mais deprimidas que as solteiras. Além disso, a felicidade feminina aumenta depois que a mulher fica viúva. Definitivamente, não é um material narrativo tão atraente quanto uma história oriunda de um livro do Nicholas Sparks.
Em 1973, “Cenas de um Casamento”, filme sueco escrito e dirigido por Ingmar Bergman, foi considerado um dos motivos pelo recorde de divórcios na Europa. Na Suécia, foi quase o dobro, de 2% em 1973 para 3,3% em 1974, além de fila de espera de semanas e até meses para uma sessão de terapia de casal. Segundo o diretor, a obra seria sobre “o fato absoluto de que o ideal burguês de segurança corrompe e prejudica a vida emocional das pessoas”. O filme, feito com orçamento minúsculo, foi um sucesso de público ao redor do mundo – só na Suécia foi assistido por 3,5 milhões de pessoas, metade da população do país.
“Cenas de um casamento” foi assumidamente a principal inspiração para diversos filmes de amor que privilegiavam o realismo em detrimento da fantasia, como “Maridos e Esposas”, do Woody Allen, “Antes da Meia-Noite”, de Richard Linklater, e “História de um Casamento”, de Noah Baumbach. Mais literal é a nova versão da obra, minissérie com o mesmo nome dirigida pelo israelense Hagai Levi (responsável pela série “The Affair”) e estrelada por Oscar Isaac e Jessica Chastain. Aqui, os papéis de gênero são invertidos: a mulher trabalha fora e sustenta a casa, o homem ganha menos e cuida das crianças. Há uma quebra de quarta parede no início de cada episódio nos lembrando que, apesar do realismo, ainda estamos assistindo a uma obra de ficção – embora a direção de arte excessivamente limpinha seja um lembrete ainda maior de que se trata de uma produção bem americana da HBO.
O filme de amor é como aquela comida gostosa mas pouco nutritiva. É muito bom de vez em quando, dá mais graça à vida. No entanto, os dias de hoje pedem algo que alimente melhor as nossas demandas emocionais. Não precisamos ser derrotistas, podemos investigar, com diferentes resultados, arranjos românticos alternativos. O filme “Uma Relação”, de Stefano Sardo, explora o que acontece quando um casal resolve se separar de modo natural, progressivo e amistoso, sem o rompimento clássico, abrupto e sofrido, associado a esse processo. A história, autobiográfica, foi escrita a quatro mãos pelo diretor e sua ex-mulher, Valentina Gaia. Prova que, na vida real, é uma possibilidade afetiva que rende frutos; e no cinema, bons filmes.
separá-los, um casamento interrompido, final feliz. Porém, um olhar mais atento percebe que não há nada de feliz no final. Benjamin e Elaine parecem desorientados após a resolução do grande gesto romântico, e não contentes. Mrs. Robinson tampouco é apenas uma vilã, e sim uma vítima do patriarcado. As múltiplas camadas explicam porque este é um dos filmes mais influentes da história do cinema.
Maria Clara Drummond é jornalista e escritora, autora dos romances A Realidade Devia Ser Proibida (editora Companhia das Letas, 2016) e A Festa É Minha e Eu Choro Se Eu Quiser (editora Guarda Chuva, 2013)
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