O meu último sutiã

Da famosa propaganda de Washington Olivetto à censura no Instagram, as dores e as delícias de encarar o mundo de peito aberto (e bem soltinho)

10.03.2021  |  Por: Letícia Gicovate

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O meu último sutiã

Afinal, de quem são os nossos seios? Eu era criança quando foi lançada uma propaganda chamada “Meu Primeiro Sutiã”. Pra quem não conhece a história é a seguinte: uma menina observa suas colegas numa aula de Educação Física. Ela então nota que é a única com os peitos livres sob a blusa, enquanto todas as outras meninas usam sutiã. Como Eva atravessada pela maldição da maçã, a menina na puberdade, então, se percebe nua no Éden. Parece ali realizar que, a partir de agora, sua natureza precisa ser coberta, e se envergonha. Mas logo na cena seguinte ela será salva. Ao chegar em casa deixa de lado a boneca e encara um presente que a espera sobre a cama.

O primeiro sutiã é vendido como um rito de passagem, um elemento civilizador, uma armadura social que vai protegê-la de um mundo que já a percebe pronta pra ser devorada. Os peitos são socialmente cobertos na puberdade e não estarão livres nunca mais. Na fase adulta o esconde-esconde fica mais interessante, ganha contornos eróticos com arames, rendas e enchimentos que agradam aos olhos e deixam cada vez mais marcas sobre a pele. Na maternidade precisam ser cobertos por paninhos, toalhas, muros de concretos e o que mais puder manter as repugnantes tetas cheias de leite distantes do convívio social. Nossa liberdade e o nosso conforto nunca foram opção.

Há quem goste de sutiã, há quem ame, há quem precise, há quem queime. Mas não conheço uma mulher que se sinta totalmente tranquila ao não usar. Abdicar do sutiã é lido como um convite público: olhe, assista, julgue, faça caras e bocas, emita sons, não disfarce, diga alguma imoralidade, pode tocar. A partir do primeiro sutiã seus seios nunca mais serão seus. Caem em domínio público, viram maldição, alimento, fetiche. Viram objeto de comparação e análise, adoração e crítica, mesmo quando hermeticamente vedados.

Mas claro, existem excessões. No fim dos anos 80 – quando Washington Olivetto criou a campanha que ganharia status de arte no meio publicitário – os peitos livres eram super bem-vindos em algumas ocasiões específicas. Mamilos despontavam firmes em micro-biquínis nos anúncios de bebida e shows de humor, decotes exuberantes convidavam homens a comprar carros e estrelas revelavam seus belos seios nus, ainda livres de silicone, nos filmes de pornochanchada e nas capas da Playboy. Em comum entre todas essas representações e usos do nosso corpo uma coisa chama atenção: nossos seios sexualizados, sendo amplamente alforriados, exibidos e celebrados como bem de consumo. O mesmo olhar masculino que condenou nossa nudez ao desacato e romantizou nossa puberdade ainda decide quando, onde e como ela pode ser revelada. Até os dias hoje.

Nos últimos anos uma renovação parecia engatilhada através das redes sociais. Enquanto subíamos a hashtag #freethenipples nos reconectávamos com a imagem do nosso corpo nu. Passamos a nos olhar e nos revelar com muito mais afeto, acolhimento e naturalidade. Voltamos a reivindicar o direito e a delícia de encarar o mundo de peito aberto. Mas a festa não durou muito, há pouco tempo o Instagram apertou ainda mais as rédeas dos seus termos de uso (já bastante enviesados) e uma infinidade de contas voltadas à sexualidade e ao bem estar feminino foram varridas do mapa. Nessa caça às bruxas digital estão sendo censuradas contas que ensinam educação sexual, que propagam body positivity, sex shops voltadas ao público feminino e páginas de arte.

O curioso é que qualquer busca preguiçosa pelo Instagram revela milhares de homens e marcas exibindo imagens hiper sexualizadas da nossa nudez. E dá-lhe corpos perfeitos cobertos de óleo, desprovidos de pêlos e com proporções irreais. A auto-expressão feminina é marginalizada enquanto o machismo estrutural segue chancelado em mais um espaço social. Quando nos encaixamos no padrão masculino continuamos sendo servidas em sistema de open bar.

Na cena final do comercial a menina anda pela rua quando é notada por um rapaz. Ele se volta pra ela que reage com um olhar sério, cobrindo os seios com o material escolar. Pra logo depois voltar a caminhar tranquila e sorrir pra câmera segura de si. Ela não precisa mais se esconder, ela não precisa mais se preocupar. Ela agora tem o seu primeiro sutiã.

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