O olhar do privilégio

“The White Lotus”, uma das séries sensação do ano, e o aclamado filme “O Souvenir” tratam, cada um a sua maneira, das tensões de classe. No entanto, o andar de baixo continua subrepresentado

13.10.2021  |  Por: Maria Clara Drummond

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O olhar do privilégio

Nos últimos anos, fomos conclamados a pensar sobre nossos privilégios de classe, orientação sexual, gênero e raça. Nesse movimento, ressignificamos pequenos atos cotidianos, tais como idas ao shopping, beijos no meio da rua ou interações com a polícia. É natural, portanto, que filmes e séries reflitam esse zeitgeist. É o caso da última sensação da HBO, “The White Lotus” (2021), criada por Mike White. À princípio, trata-se do clássico formato andar de cima / andar de baixo (ou, na versão brasileira, casa grande e senzala) que retrata a dinâmica social entre os personagens mais abastados e seus empregados. Se, no início deste século, essa dinâmica era romantizada em séries como “Downtown Abbey”, hoje são mais críticas, como no sucesso do ano passado “Parasita”, de Bong Joon Ho. “The White Lotus” pretende se enquadrar na segunda categoria.

O elenco da série é enorme: entre os funcionários do hotel, há o gerente Armond e a massagista Belinda; os hóspedes são o casal em lua de mel Shane e Rachel, a sessentona deprimida Tanya e a família Mossbacher. Já aqui encontramos as limitações do seu teor crítico: a classe baixa continua sub-representada. Armond, na verdade, pertence a uma classe intermediária, explicitada pela cena em que ele diz a um funcionário: “eles me exploram, eu te exploro”. É irônico que logo no primeiro episódio o gerente instrua o staff da seguinte forma: “Nossa presença e identidade precisam ser genéricos, devemos desaparecer atrás da máscara de ajudantes agradáveis e intercambiáveis”. E, de fato, a ala branca e privilegiada do elenco permanece sendo aqueles dotados de subjetividade, mesmo que seja crueldade, carência ou hipocrisia. À parte de Belinda, o resto dos funcionários permanece como acessórios ou figurantes, tal qual descreveu Armond.

“The White Lotus” encontra surpreendente ponto de encontro com outra obra que lida com questões de classe, o aclamado filme “O Souvenir” (2019), de Joanna Hogg. Trata-se de filme lento, contemplativo, artisticamente ambicioso – ou seja, à princípio, não poderia ser mais diferente de “The White Lotus”. Julie, alter-ego da diretora, é uma jovem estudante de cinema que namora um rapaz um pouco mais velho, Anthony, funcionário do Ministério das Relações Exteriores. As diferenças de classe são pontuadas ora de forma simbólica, ora direta. Julie tem um apartamento próprio em Knightsbridge, em frente ao Harrods; Anthony sequer tem casa. Em uma cena, ambos estão na cama, ele pede para que ela chegue mais para o lado, pois está quase caindo: “Você ainda tem alguns centímetros, eu não tenho nada, eu não tenho para onde ir”.

Em comum, “The White Lotus” e “O Souvenir” tem como evento central o roubo de itens valiosos dentro de um apartamento como reparação de classe. No primeiro, o ocorrido é com a família Mossbacher, constituída pela CEO Nicole, seu marido emasculado Mark, o filho nerd Quinn, e a filha politizada porém bully Olivia, que trouxe uma amiga, Paula. As duas passam o tempo inteiro destilando veneno na forma de slogans politicamente corretos. Porém, Paula, que é uma das personagens não-brancas, começa a se irritar com a hipocrisia e excesso de privilégio dos seus anfitriões. É com Kai, funcionário do hotel, e nativo da ilha, que conversa sobre suas impressões. Já que sabe o código do cofre e a agenda da família, Paula sugere que Kai roube as joias de Nicole.

O plano dá errado, Kai é preso, Olivia percebe que sua amiga é cúmplice, elas conversam a respeito. Paula enxerga o roubo como justiça. Afinal, a terra de Kai foi roubada por colonizadores brancos como os Mossbacher. “Acho que não é roubo quando você presume que tudo já é seu”, diz Paula para Olivia.

Em “O Souvenir”, Anthony rouba o apartamento de Julie pra que os dois possam viajar para Veneza. Julie descobre, eles conversam, e tal como Olivia, ela parece em parte compreender. No livro “The Melancholia of Class”, Cynthia Cruz analisa as dinâmicas de classe do filme: “Durante uma discussão, Anthony diz ‘Eu faço o que faço para que você durma bem à noite’. Embora se refira ao seu trabalho no ministério, também fala da sua experiência de classe, porque os pobres devem existir para que famílias como as de Julie possam desfrutar dos seus privilégios. Não está claro se Anthony está ciente das implicações do que está sugerindo, seu inconsciente está falando através dele”.

Cynthia Cruz, poeta americana que tem sua origem na classe operária, aponta as maneiras como “O Souvenir” invisibiliza Anthony. A representação de classe no cinema e televisão sempre foi simplista, quando não problemática, e somente nos últimos anos que tem ocorrido uma tentativa de reparação. Isso é, evidente, positivo, mas ainda há muito para onde caminhar. Afinal, é inevitável existir um ponto cego quando a crítica de classe vem apenas na forma de autocrítica. Estatísticas recentes do Policy & Evidence Centre, centro de pesquisa inglês, mostram que somente 16% das pessoas em empregos criativos vem da classe operária. Os dados se referem à Inglaterra, a situação deve ser pior em países com políticas públicas e sociais mais precárias, como Brasil ou Estados Unidos. É preciso que isso mude para que o debate de classe fique realmente interessante.

Maria Clara Drummond é jornalista e escritora, autora dos romances A Realidade Devia Ser Proibida (editora Companhia das Letas, 2016) e A Festa É Minha e Eu Choro Se Eu Quiser (editora Guarda Chuva, 2013)

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