O que acontece quando você faz um filme pornô?

Conheça a história de obstáculos, vulnerabilidade e ética (principalmente por trás das câmeras) da diretora de 'Landlocked'

18.02.2019  |  Por: Lívia Cheibub

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O que acontece quando você faz um filme pornô?

Landlocked nasceu da minha obsessão em experimentar o “sexo no cinema”. É possível interpretar o ato sexual como uma experiência intensa e única? Conseguimos encenar o sexo? Qual o impacto de tratar a sexualidade de modo aberto?

Desde que comecei a assistir pornô, tinha o desejo de fazer um filme e experimentar linguagens. Comentava sobre a ideia com amigxs próximos, e antes que eu terminasse de falar, a primeira presunção era que eu quisesse atuar. O que não teria problema, mas já ali entendi que dirigir um filme com sexo não seria uma jornada fácil.

Em 2007, não havia matérias sobre a Erika Lust e pornô feminista e as revistas “femininas” ainda popularizavam um “jeito certo para agradar os homens na cama”. Isso me fazia pensar: o que estamos chamando de sexo?

E falando de cinema, quais seriam os sentidos culturais nas representações cinematográficas do sexo? Quem imaginou que se pudesse falar de vulnerabilidade masculina em um pornô?

Das primeiras ideias que surgiram até conseguir realizar o filme foram quase dez anos. Passamos por todo o processo clássico do cinema independente. No início, pensei em trabalhar com atores que não transavam em cena, mas não deu certo. Era uma limitação muito delicada, e eu queria explorar o sexo explícito como uma exaltação dos sentidos e desvendar o que está por trás, emocionalmente.

O roteiro foi escrito junto com a Raphaela Tavarone e é baseado numa situação que aconteceu com ela. Outras amigas haviam passado por isso, e a história envolvia várias questões que eu gostaria de tocar. Afeto, a intimidade do sexo casual, a entrega a uma paixão momentânea, uma personagem feminina independente e que sente muito prazer, e um homem normal, com inseguranças.

María Riot e Parker Marx são atores pornôs amadores e performam há alguns anos. María é Argentina, ativista dos direitos das trabalhadoras sexuais pela AMMAR. Parker, que também faz queer porn, frequentemente traz uma vulnerabilidade aos seus personagens, desconstruindo o estereótipo masculino dos atores mainstream. Sempre me chamou a atenção como eles se entregavam e estavam presentes durante as cenas e abertos à conversa. Ambos têm corpos reais, não idealizados. Não faria sentido se os nossos personagens tivessem corpos estereotipados.

Os atores María Riot e Parker Marx

Eu me questionava se era possível os atores transarem da forma como os personagens transariam. No caso do Parker, principalmente, pelo fato do seu personagem ter questões mal resolvidas de relacionamentos anteriores, era essencial que pudéssemos ver essas nuances na maneira como ele se comportaria durante o sexo.

O filme não seria o mesmo se não fosse pelos dois, que se dedicaram e se entregaram, encarando o desafio com muito profissionalismo.

Como diretora, você sempre quer a foto e o ângulo perfeitos, mas para mim a química entre os atores é a mais importante, e isso a gente não controla, nem mesmo por meio do roteiro. E eles não tinham que se preocupar em estarem em um ângulo bom para a câmera. Rodamos as cenas de sexo em takes únicos, então era muito mais sobre como “roubar” os melhores takes desse encontro sexual. Durante as cenas, incentivamos os atores a falarem o que estavam sentindo.

E aqui é importante frisar: durante o tempo em que convivemos, pude ver de perto as dificuldades pelas quais eles passam por serem trabalhadores sexuais. Os obstáculos para alugar um apartamento, o risco regular de serem detidos e deportados ou terem sua fonte de renda (na internet) interrompida a qualquer momento, os deixam ainda mais vulneráveis.

Pagar pela pornografia é garantir valores fundamentais de produção ética

Precisamos dar espaço a essas vozes que a sociedade insiste em calar, com violência, e promover o pornô ético, que acontece, principalmente, por trás das câmeras. Nesse contexto, pagar pela pornografia é a maneira mais direta de garantir valores fundamentais de produção ética, assim como a segurança e os direitos dos atores.

Vale lembrar que no mês seguinte ao lançamento do filme, foi aprovada pelo governo americano a lei FOSTA/SESTA, que com o pretexto de reduzir o tráfico sexual derruba sites que “conscientemente auxiliem, facilitem ou apóiem o tráfico sexual”. Basicamente, vários sites em que profissionais do sexo anunciam estão sendo removidos. Isso causa ainda mais dano às comunidades que a lei diz querer ajudar, já que tira uma das únicas maneiras desses profissionais operarem seus negócios de forma autônoma, o que só os deixa mais vulneráveis.

Depois do filme pronto, vieram os desafios de divulgá-lo. Eu e minha sócia Angélica Abe nos referíamos ao filme como uma narrativa com sexo. Mas a mídia autodenominou o filme como um “pornô para mulheres”, uma classificação um tanto quanto delimitante. A verdade é que fomos aceitando todos os rótulos: pornografia feminista, post-porn, indie porn, alt porn, para divulgar o filme. Mas no fundo nunca conseguimos discutir a fundo sobre essas restrições.

Ainda me pergunto: é uma cena de sexo explícito que categoriza um filme como pornográfico? E mais: será que delimitar a configuração visual do sexo em “pornográfica” ou “erótica” não acaba limitando a própria sexualidade?

Cada vez que derrubarem o filme, vamos voltar com ele online no dobro de lugares

Começamos a receber comentários sobre o filme e as reações eram muito diversas. Teve gente que se masturbou; gente que gozou mais de uma vez; gente que nem sentiu tesão ou que achou que o filme trazia um olhar mais “tântrico” do pornô; teve quem quisesse saber mais sobre os personagens; tiveram homens que se emocionaram e choraram, e outros que disseram “ah, mas isso não é pornô!”; teve amigo próximo que sumiu depois que assistiu ao filme; teve amiga constrangida que nem conseguiu terminar o trailer; amigas próximas que não quiseram pagar para assistir; mas também tivemos casos de pessoas que pagaram para ver pornô pela primeira vez ou que mandaram o link de presente para alguém.

Chamaram de pornô melancólico, pornô triste, disseram que demos um significado político ao pornô. Vivemos situações de muita partilha, como quando desconhecidos me abordavam após exibições públicas e confidenciavam suas experiências sexuais mais íntimas.

Landlocked entrou na competição de longas do Berlin Porn Festival 2018, do International Erotic Film Festival de Turin e no Pop Porn Festival em SP. Pude conhecer e trocar experiências com mulheres talentosas que também trabalham em prol da sexualidade positiva, como a Mayume Maldita, a Érica Sarmet, a May Medeiros, a Mayumi Sato.

Essa troca nos mantém fortes, já que os obstáculos são diários. Desde tentar abrir uma conta-empresa no banco e ser negada por produzir conteúdo adulto, até sofrer censura do site Vimeo. Não há espaço seguro para a sexualidade no espaço digital e insistem em manter a pornografia no underground. Mas cada vez que derrubarem ou censurarem o filme, vamos voltar com ele online no dobro de lugares; nos apagam, resistimos e voltamos.

A diretora Lívia Cheibub e o ator Parker em making of de Landlocked

O pornô pode ser o que a gente quiser. Sexo é para todos apreciarem e não sentirem vergonha disso. O corpo é nossa propriedade, e uma constante manifestação de possibilidades.

Ele é mais um espaço de luta para o feminismo e para as minorias. A combinação de gêneros e sexualidades permite que tanto os atores quanto o público possam expandir e afirmar suas próprias identidades e desejos. Quando mostramos pessoas LGBTQ e corpos gordos, por exemplo, não só damos visibilidade como também promovemos a aceitação das diferenças. Representatividade é essencial. Com toda a opressão estética que sofremos, ver pessoas fora do “padrão de beleza” sentindo prazer é um sopro de liberdade, amor e respeito ao nosso próprio corpo e ao corpo do outro.

Pornô pode, inclusive, ser uma ferramenta para que as pessoas aprendam as regras do consentimento e para que a conversa sobre sexo se estenda depois do “sim”. É preciso falar sobre a capacidade e o direito da mulher em sentir prazer – com ou sem um pau envolvido. Por mais que muitas sintam vontade de transar, elas não necessariamente sentem que têm o direito de apreciar o prazer, como se tivessem removido psicologicamente o nosso clitóris.

O potencial criativo e narrativo do pornô ainda é pouco explorado. A pornografia também pode ser um meio para falar abertamente de sexualidade e gênero de um modo não normativo.

Mas pra tudo isso é fundamental lembrar: pornografia não é um problema, apenas fazem dela um problema.

 

Para assistir ao filme: wildgalaxies.com | Para apoiar nossa jornada: Patreon. Nossos patronos contribuem mensalmente com o valor que podem e têm acesso aos nossos filmes e cortes exclusivos |Insta: @wildgalaxies | Twitter: @WildGalaxies

 

Lívia Cheibub é diretora e produtora executiva.  É fundadora da produtora Wild Galaxies, com sede em NY, que se dedica a criar narrativas que exploram a sexualidade humana e novas representações do sexo no cinema

2 Comentários

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2 respostas para “O que acontece quando você faz um filme pornô?”

  1. Iaiá Tinoco disse:

    Vc é maravilhosa Lili! Brigada pelo filme (que ainda nāo vi porque pobreza) e pelo texto. Só li verdades e bons pontos pra iniciar um boa conversa sobre o assunto.
    Continua quebrando tudo e muita sorte nessa jornada! <3

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