O que descobri sobre mim e a maternidade com Elena Ferrante
Indicar um livro é como apresentar um amigo a alguém. É também expor uma parte de nós mesmas. Para nossa colaboradora Giuliana Bergamo "A filha perdida", da célebre escritora napolitana, é ela. E ela conta pra nós por que
10.06.2021 | Por: Giu Bergamo
Tem aquela história que diz: indicar um livro é como apresentar um amigo a alguém. Concordo. E vou além: sugerir um livro muitas vezes é expor uma parte de nós mesmas – o que nem sempre é exatamente confortável. Me sinto assim quando falo de “A filha perdida” (Intrínseca, 2016), romance de Elena Ferrante ao qual dediquei parte da minha pesquisa de mestrado. Digo então: “A filha perdida” sou eu.
É uma afirmação difícil de fazer. Leda, a protagonista e narradora, é uma personagem polêmica. Teve uma relação complicada com a mãe, é capaz de roubar a boneca de uma criança e, quando jovem, deixou as filhas pequenas para trás, sob os cuidados do pai, para viver uma paixão e investir na própria carreira. O núcleo da história se desenrola na praia onde Leda, prestes a completar 48 anos, vai passar férias sozinha. As filhas já são adultas e vivem com o pai no Canadá. Durante a temporada, ela se aproxima de uma família napolitana que a faz lembrar da própria família. Cria um vínculo principalmente com três personagens: Nina, uma jovem mãe; Lenu, a filhinha dela, que se perde na praia; e a boneca da menina, que acaba sendo surrupiada.
Leda e eu temos muito em comum. Percebi isso nos últimos dias de 2016, quando li a história pela primeira vez. Na época, minha filha estava a poucos dias de completar 6 anos, meu filho tinha 3 e eu ainda era casada. Havia pouco que eu tinha sido arrebatada por Ferrante, uma das autoras mais festejadas pela crítica e pelo público dos últimos tempos. Enquanto esperava o lançamento do último volume da tetralogia que a fez mundialmente famosa, comprei “A filha perdida”, o terceiro dos quatro romances que publicou até agora. Meu plano era ler durante os dez dias que passaríamos na praia, no recesso de final de ano.
O livro é curto (tem só 174 páginas) e a leitura é fluida – muita gente lê “em uma sentada”. Eu, no entanto, demorei mais de uma semana. Passei parte daqueles dias sozinha com as crianças, porque o pai delas precisou voltar para São Paulo para trabalhar. Não havia paz. Meus momentos eram insistentemente interrompidos por choros, gritos de “maaaaãeeeee!!!”, brigas por brinquedo e todo o pacote de demandas inerente a duas crianças pequenas que têm a mãe à disposição. Ler na praia, sob a sombra do guarda-sol? Jamais. E o medo de que meus filhos se afogassem, tomassem muito sol, fossem roubados por uma maluca qualquer? Eu mal conseguia me sentar por uns minutinhos. Tinha sempre um querendo ir ao mar, outro precisando da sombra. Um verdadeiro inferno. Voltei mais cansada do que fui, mais irritada, triste e, embora não vivesse nenhum tipo de relacionamento abusivo ou estivesse apaixonada por uma terceira pessoa, comecei, ali, a questionar meu casamento. Ou melhor: a questionar meu papel como mulher.
Acompanho e estou no debate sobre assuntos femininos e de maternidade há muito tempo, até mesmo por trabalho. Então, parece papo de alienada dizer isso agora, quando as discussões sobre as várias possibilidades de ser mulher estão mais do que postas. Mas é verdade que só passei a pôr em dúvida a minha maternidade pra valer depois de me tornar mãe. Só me perguntei se eu queria ser uma pessoa casada depois que casei. Agora perceba a contradição: eu me casei por amor e vivi um relacionamento feliz na maior parte do tempo. Até que acabou. Eu escolhi ser mãe. Planejei minhas duas gravidezes e não quero nem pensar no que seria a vida sem meus filhos. O amor que sinto por eles nunca foi colocado em xeque. Amo também a mulher que me tornei depois de parir duas pessoas. Mas nada disso me livra da dúvida – “e se eu não…?” – e da persistente vontade de fugir.
Essa, na verdade, me acompanha há mais tempo. Eu ainda tinha um “naná” e chupava chupeta quando fugi de casa pela primeira vez. Não sei bem qual foi o estopim. Provavelmente alguém me disse “não”, contrariou minha vontade, disse que eu não estava me comportando bem. Pois eu fiz as malas (coloquei uma fralda, calcinhas limpas e uma chupeta na mochila cheia de areia que meu pai usava para jogar futebol society) e saí pelas escadas. Era noite, estava escuro, então voltei por medo. Mas a possibilidade de sumir é ainda uma ideia que me acalma. E, no entanto, estou cada vez mais aterrada, cuidando de uma casa que tem quintal, plantas, duas crianças, dois gatos, um cachorro bebê que foi abandonado e chegou tão pequeno que precisou ser amamentado.
Essas coisas todas ficaram, por muito tempo, guardadas em caixinhas mal fechadas dentro de mim. Até que um livro me ajudou a destampar, a tirar a bagunça para fora e tentar olhar para ela com curiosidade. Não tenho a menor pretensão de arrumar nada. Não sou uma pessoa de ordem. Fujo dela sempre que me é imposta, aliás. Mas conviver com o caos à mostra é um caminho mais interessante do que tentar escondê-lo embaixo do tapete.
A fuga que Leda realiza de fato na história me ajuda a fugir um pouco sem abandonar ninguém e, pelo contrário, ficar mais perto de mim. A leitura de “A filha perdida” se desdobrou não só em uma pesquisa de mestrado, mas reforçou minha busca por diálogos com pessoas reais ou personagens de ficção sobre o feminino, as várias possibilidades de ser mulher, as relações entre mães e filhas, a maternidade.
Depois do romance de Ferrante, li e pesquisei muitos outros que tratam sobre os mesmos temas. E, assim como Leda que, ao conviver com as outras personagens do livro, se depara com a complexidade de sua existência, vou achando nesses seres de ficção partes de mim que eu não conhecia ou não entendia. Acho que não posso dizer que, agora, as compreendo. “As coisas mais difíceis de falar são aquelas que nós mesmos não conseguimos entender”, como diz Leda no início do romance. Mas, pelo menos, assim, posso me aproximar mais desse monte de mulher que mora em mim.
Giuliana Bergamo é jornalista e mestre em literatura e crítica literária pela PUC-SP. Pesquisa personagens femininas reais e na ficção. A partir de 15/06, ministra o curso “Mães, filhas e literatura”, pelo Clube Sereno.
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