O que eu aprendi sendo burra

Uma confissão, um desabafo, um salve a quem sabe confiar e estender a mão

15.06.2021  |  Por: Lia Bock

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O que eu aprendi sendo burra

Ser burro é uma condição subjetiva, não existe um método totalmente eficiente de dizer que uma pessoa é desprovida de inteligência. Há quem diga que medir o QI seria a melhor forma de determinar se esse ou aquele ser humano é burro, mas, esses testes também são vastamente questionados e vamos falar a real: muita gente nunca mediu o QI na vida e é considerada burra. Eu estou nesse grupo. 

“Ah, Lia, não fala assim, você não é burra”, muitas das pessoas que me conhecem vão dizer. E não é só amor, elas têm alguma razão. Mas, gente, quem determinou minha burrice não fui eu. Eu não me achava burra até o mundo me convencer disso. E foram anos até que eu mesma respirasse fundo e assumisse minha falha cerebral. Vamos aos fatos. 

Eu demorei muito mais do que as outras crianças para aprender a ler e escrever. Mudei de escola de forma serial nos primeiros seis anos escolares porque “não me encaixava” e não foram poucas as vezes em que as pessoas acharam que eu estava brincando de fingir que não sabia. Eu trocava letras e era absolutamente incapaz de escrever algumas palavras duas vezes da mesma maneira. Quando eu lia em voz alta, inventava palavras, comia outras e ficava tão tensa em vocalizar corretamente, que não conseguia compreender nada do texto em questão. Também tinha dificuldade em aprender caminhos e decorar qualquer tipo de coisa. 

Minhas amigas me passaram cola a vida inteira e sabiam que no trabalho em grupo eu não podia ficar com a parte da escrita. Minha família sempre leu e corrigiu meus trabalhos, minhas cartas e bilhetes. Trago histórias constrangedoras no currículo como o bilhete romântico que escrevi pro meu primeiro namorado, aos 16 anos, e ele ficou puto, achando que eu estava de zoeira, de tanto erro de português que aquelas parcas linhas continham.

Uma vez, no colegial, precisando muito tirar B na prova de história para passar de ano, me matei de estudar – o que é muito comum, as pessoas burras sempre estudam e se esforçam loucamente – e tinha certeza de que tinha ido muito bem. Mas na hora da devolutiva a surpresa: a professora, Renata, ela chamava, me deu E! Que é tipo um zero bem redondo. Professora, impossível, tem alguma coisa errada aqui, eu disse. “Lia, a sua prova é uma ofensa, impossível até de corrigir”, ela retrucou. Usei toda minha eloquência (que não era pouca) para argumentar que não estávamos na aula de português e se ela deixasse os erros de lado, o conteúdo estava corretíssimo. Mas ela riu e disse que não dava pra fazer essa separação. “Sinto muito”. Lá fui eu para o conselho novamente e mais uma vez passei de ano. Chegar nessa última instância era comum e eu sempre passava, não por dó, mas por reconhecimento. Eu tinha lá minhas qualidades e no Colégio Equipe elas valiam muito. 

Uma vez, uma carta anônima extremamente desagradável rodou meu grupo de amigos. Ela trazia segredos e adjetivos horríveis a uma de nossas comadres e algumas das informações faziam parecer que eu era a autora. Mas na investigação rápida fui descartada. As 3 páginas de texto não tinham um erro sequer. Quem quer que tenha tentado me incriminar não contava com a astúcia dos meus chegados que passaram a vida recebendo minhas cartas cheios de erros. Como eu gostava de escrever cartas, a Nana tem uma caixa delas!

 

A patologia 

 

Depois de muitos anos a palavra dislexia entrou na minha vida e fez cair várias fichas pra mim e para todos em volta. Lembro do alívio do meu irmão. Era reconfortante ver que a burrice tinha um nome, era uma patologia. Ufa. Mas nessa hora, eu estava na faculdade e minha vida já estava marcada pra sempre.

Porque tem esse capítulo: eu não sabia ordenar as letras, mas a única coisa que eu sabia era juntar palavras. Brincava de fazer jornal da rua desde pequena e escrevia contos e crônicas quando a ferramenta ainda era a máquina de escrever. Era quase sina melancólica, sabe? Quando eu decidi prestar jornalismo, os olhos da minha mãe se encheram d’água. Era o caminho mais difícil e ao mesmo tempo, era o único caminho possível. Ela não tinha me tolhido até ali, não ia ser agora. Aliás, acho que ela se emocionou num elogio à minha coragem. E veja, meus pais nunca me trataram como burra. Ao contrário, sempre me senti bem especial. E, verdade seja dita, como bons educadores que são, vão se incomodar profundamente com o emprego da palavra ‘burra’ neste texto. Mas a ideia aqui é incomodar um pouco mesmo.

E lá fui eu, ser burra nas redações. Levei muita determinação, minha boa escrita, alguns antídotos para constrangimento e uma irmã que sempre leu tudo que eu pedi (inclusive este texto ‘-). E foi, ali, sob as asas de chefes incríveis, pares viscerais e gente que viu alguma coisa em mim, que percebi que assumir minhas falhas não me diminuiria. Eu não precisava sofrer em silêncio e isso era uma novidade. 

E é aqui que eu quero chegar. Ser (o que muitos chamaram de) burra me ensinou a precisar dos outros. Ter uma dificuldade tão presente e importante para o que eu gostava de fazer, fez de mim uma pessoa que sabe pedir ajuda e isso trouxe a consciência da importância da coletividade. Pode parecer pouca coisa, mas no mundo em que vivemos faz uma diferença danada. Quando a meritocracia reina, a individualidade é celebrada e o capitalismo selvagem nos impõe o espírito competitivo, precisar dos outros pega mal, te desmerece. E vou mais longe, quando a gente não está acostumado a pedir ajuda, perde a prática, acha que está sempre atrapalhando e, principalmente, desaprende a confiar. E confiar é uma das dádivas da vida!

É claro que o mundo mudou. O fato de escrevermos pouquíssimo a mão e de termos corretor automático (pro bem e para o mal) em todos os nossos gadgets mexeu com a dinâmica dos disléxicos (e burros afins). Fora o áudio, que eu amo! Mas juro que não é por medo de escrever – porque eu vivo da escrita e é botando palavras no papel ou na tela que me esbaldo. Eu também mudei, tive o privilégio de ter o melhor professor e a melhor terapeuta na retaguarda (obrigada Chico Moura e Zeneide Monteiro por anos de apoio e impulso), isso com certeza fez toda a diferença. Já não tropeço tanto nas letras e, quando tropeço, não sinto que meu mundo acabou, como tantas vezes na vida. 

Mas uma coisa segue igual: quando fui (o que as pessoas chamam de) burra, aprendi como a vida a dois, a três, a dez é bem melhor. Desenvolvi uma capacidade social de puxar as pessoas pra perto (quem precisa não tem opção!) e essa dinâmica trouxe quase tudo que eu sei hoje. Porque para se aproximar é necessário se abrir para o novo, aceitar as falhas alheias, se entregar com defeitos e gentilezas e respeitar as diferenças (claro, contanto que não me venha com Terra plana). Hoje, me sinto especial por ser agregadora, por ser uma conselheira requisitada e por ter uma capacidade incrível de trabalhar em equipe e existir coletivamente. Eu sei o som e o sabor da dor de sofrer sozinha e nela eu não fico mais. Ter sido burra me ensinou a precisar e precisar me ensinou a existir.

 

Lia Bock é jornalista e mãe de quatro. É comentarista na CNN Brasil e autora dos livros Manual do Mimimi, do Casinho ao Casamento e Vice-versa e Meu Primeiro Livro, ambos pela Cia. das Letras

3 Comentários

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3 respostas para “O que eu aprendi sendo burra”

  1. Rita disse:

    Queria ser burra assim!
    Sensacional Lia!
    Quando a vida nos impõe, a gente se impõe, a nós mesmos!

  2. Ana bock disse:

    Lindo texto. Que delícia ler sobre isto, depois de 42 anos! Lia, você esqueceu da Lena Kerches e do professor de português do Equipe. Foram muito importantes na sua história. E o termo burra não me incomoda pois sei que é apelido pra sua inteligência. Amo você.

  3. Muito show me achei no início muitíssimo semelhante a você pois vários dos problemas que tiveste eu tive.
    O texto me remeteteu a minha infância.
    Parabéns.
    Viva o corretor.

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