O que ‘The Office’ tem a nos dizer sobre 2021
Notas sobre a relevância atual da série mais assistida nos serviços de streaming desde que começou a pandemia
25.05.2021 | Por: Maria Clara Drummond
Não é exatamente surpreendente que a série mais assistida nos serviços de streaming desde que começou a pandemia
tenha sido The Office. Faz mais de um ano que a maioria de nós trabalha de casa. De súbito, os antigos rituais do que antes representavam a monotonia do mundo corporativo agora são motivo de nostalgia. A “Fatiga de Zoom”, mal-estar causado pelo excesso de videoconferências, fez com que a tecnologia defasada das décadas passadas ganhasse até certo charme, como fax, scanner, máquina de xerox, iPod – e liquid paper! Até mesmo os colegas irritantes e o chefe sem noção talvez sejam preferíveis à ausência completa de contato social.
No entanto, o que torna a série ainda mais relevante nos dias atuais é o comentário político por trás do seu enredo. The Office é sobre um mundo em transformação em que antigos valores estão sendo deixados para trás. Não é à toa que Dunder Mifflin, a empresa ficcional que serve como palco para o mocumentário, vende papel em um mundo cada vez mais dominado por telas. Michael Scott é um protagonista caracterizado pela completa falta de capacidade de se adaptar a um mundo em que não é mais aceitável fazer comentários racistas, machistas e homofóbicos – ainda mais em ambiente de trabalho. Steve Carell declarou recentemente que seria impossível fazer a série hoje em dia por conta das mudanças sociais de lá para cá. “O humor de Michael Scott é todo baseado no seu comportamento inapropriado”, disse ele.
Rir do opressor, jamais rir do oprimido. Esse é o mantra do humor com viés progressista. “Meu sonho é viver num mundo em que posso contar uma hilária piada de Aids”, diz Michael Scott. Nós rimos dele, e de sua triste incapacidade de enxergar o mundo para além de si mesmo, jamais rimos com ele. Sua falta de tato o torna patético, é o motivo da sua vida sem amigos, tão solitária, digna de pena. À parte de Dwight, seu fiel escudeiro, ninguém no escritório acha graça de suas brincadeiras, ao contrário, consideram ofensivas. É preciso que o personagem amadureça esse aspecto de sua personalidade para enfim encontrar redenção, representada pelo respeito e amizade dos colegas, e a família com a mulher que ama.
Na década de 90, já se falava em politicamente correto, mas ainda era normal um programa de humor conter piadas sexistas e homofóbicas, contadas a partir de uma perspectiva hegemônica. The Office surgiu logo antes dessa discussão ganhar o mainstream. Por ser um mocumentário, a câmera funciona como um personagem, com ponto de vista ostensivo, que nos ensina com quem deveríamos nos identificar. Jim, em especial, ocupa essa função. Toda vez que algum personagem diz ou faz alguma coisa absurda, ofensiva, inapropriada, a câmera vira-se para Jim. E, assim, inconscientemente, aprendemos que devemos rir do idiota que está contando uma piada velha e sem graça que perpetua preconceitos antigos, e não da piada em si.
Ricky Gervais, criador da versão original da série, que foi ao ar na Inglaterra em 2001, diz que a chave de uma piada está na intenção do autor, e não na recepção. É, portanto, através de participação ativa da câmera que percebemos a intenção. Assim, The Office consegue alcançar algo raro: fazer comentários constantes sobre temas delicados, potencialmente ofensivos, sem jamais atravessar a linha divisória, separando-se do “tiozão do zap” – ou, melhor ainda, denunciando-o como uma figura intelectualmente limitada, socialmente patética. Como diriam os americanos, “have the cake and eat it too”.
São personagens dolorosamente atuais em tempos em que o neofascismo tornou-se uma ideologia sedutora para tanta gente
The Office foi ao ar na NBC entre 2005 e 2013. A série é um estudo de caso de programa de televisão que começa brilhante e decai à medida que se estende por mais tempo que deveria. A versão britânica só teve 14 episódios; a americana, 201. As diferenças não estão apenas no tamanho, e sim no espírito. O humor inglês não tem a atmosfera otimista do americano. O The Office original pretendia ilustrar o tédio do trabalho de escritório, o vazio existencial daquelas pessoas, que gastavam tantas horas de sua vida em algo sem propósito. O antropólogo David Graeber chama isso de “bullshit jobs”: é um tipo de trabalho que, caso não existisse, não faria a menor diferença, ou até mesmo tornaria o mundo melhor e mais justo. “Bullshit jobs” quase sempre são justamente trabalhos de escritório. Hoje, graças à pandemia, sabemos que não poderíamos viver sem os funcionários de supermercado, mas talvez a Humanidade seria melhor caso não existissem traders do mercado financeiro.
Um programa de humor que é baseado no tédio precisa ser necessariamente curto. Por isso, a versão americana precisou alterar algumas características-chaves para garantir a longevidade do programa. Jim inicialmente reclama da falta de perspectiva de carreira e sobre como seu cérebro é ocupado por informações inúteis que dizem respeito a burocracias irrelevantes. No fim, fazendo um contraponto a essa primeira fala, ele diz que deve tudo o que tem a esse trabalho sem sentido: sua mulher, seus filhos, seus amigos. Michael Scott precisou ter sua personalidade amenizada para agradar ao público americano, e, assim, virou um homem socialmente inapto, mas com um coração gigante, carente de amor e atenção.
The Office faz troça do conservadorismo de parte dos seus personagens: Michael e sua insistência em contar piadas ofensivas, Dwight e seu eterno modus operandi “bandido bom é bandido morto”, Angela com fervor religioso cristão tão rígido quanto hipócrita. São personagens dolorosamente atuais em tempos em que o neofascismo tornou-se uma ideologia sedutora para tanta gente.
Michael, como é o protagonista, soa mais como ingênuo que perigoso. Por exemplo, cai em toda sorte de fake news que encontra na internet, desde esquemas de pirâmide até o clássico golpe do Príncipe da Nigéria. Já Dwight e Angela mantêm por quase todas as temporadas personalidades desagradáveis diante daqueles que os cercam. Em janeiro, a revista americana The Atlantic escreveu um artigo que analisa Dwight a partir da invasão do Capitólio. De fato, é triste constatar que esse personagem insano, obcecado por armas, com masculinidade frágil, e adepto da lei do mais forte, mesmo que essa força só exista através de trapaças, seria eleito no Congresso, seja no Brasil, seja nos Estados Unidos – vide a infame Marjorie Taylor Greene.
No entanto, fazendo jus aos clássicos arcos narrativos americanos, a serie ameniza as falhas de caráter dos personagens mais problemáticos na medida que o episódio final se aproxima. Jim e Dwight deixam de ser arqui-inimigos e tornam-se melhores amigos. Angela, fervorosamente homofóbica ao longo de oito temporadas, vai morar junto com seu colega gay, Oscar. Nos primeiros episódios, Michael dizia que aquele escritório era uma família. Isso era motivo de piada, além de ser uma crítica a um modelo de empresa que se tornaria cada vez mais vigente, a precarização do trabalho disfarçada no espírito I LOVE MY JOB. No fim, não havia mais um comentário filosófico a respeito do mundo contemporâneo, como é o melhor do humor, e sim apenas uma resolução feliz de novela, simpática e inverossímil. Mas, olhando pelo lado positivo, temos algumas centenas de episódios para rever, refletir, e, principalmente, rir.
Maria Clara Drummond é jornalista e escritora, autora dos romances A Realidade Devia Ser Proibida (editora Companhia das Letas, 2016) e A Festa É Minha e Eu Choro Se Eu Quiser (editora Guarda Chuva, 2013)
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