O verdadeiro mochileiro é um mito

Mochila pesada é um mico? Pegar avião também? Tem que passar sempre pelos lugares mais ermos? No segundo texto de sua série sobre a aventura de cair na estrada latino-americana, Carolina De Marchi desconstrói a cartilha do viajante independente

21.11.2019  |  Por: Carolina De Marchi

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O verdadeiro mochileiro é um mito

Anoitece. Todos estão reunidos ao redor de uma fogueira qualquer em algum povoado perdido da América Latina. A maioria tem unhas pouco cuidadas, roupas levemente encardidas, o cabelo não vê um corte há meses, bebem cerveja vagabunda e contam histórias. Muitas histórias. Sobre as fronteiras que cruzaram, as pessoas bizarras que conheceram, piadas, talvez alguns perigos, paraísos escondidos, amores passageiros, doenças exóticas, comidas estranhas, pitadas de clandestinidade. É mais uma noite clássica em um camping. Ou quem sabe num hostel. Será que todo mundo é digno de sentar nessa roda?

Depois de alguns meses de estrada, percebi que entre os mochileiros existe um manual subliminar de como “se deve viajar”. É tipo uma carteirinha do backpacker que você só ganha se cumprir certos requisitos. Como qualquer clube seleto, ele tem uma série de regras, quase um código secreto – mas que todo mundo respeita e honra.

Mochileiro que é mochileiro, dizem, não deve voar, por exemplo. Deve apenas pegar carona, ônibus ou barco. Ai de quem comprar uma passagem de avião! Não pode. O negócio é se mover por terra, devagar. Também deve-se gastar sempre o mínimo possível, claro. Não é apenas regra, já se tornou quase uma competição. Quem se importa se você só come pão, abacate e macarrão, ou se não provou o ceviche típico do país? Isso é o de menos, o que conta pontos é se você gastou pouco. Nessa mesma linha também entram a passagem por lugares menos visitados e pelos caminhos mais difíceis. É incrível ouvir o povo se vangloriando de suas conquistas: um que descobriu as ruínas que ninguém ouviu falar, a outra que gasta menos de dez dólares ao dia, o terceiro que caminhou três horas com 18 quilos nas costas. Aplausos e muitos checks na carteirinha!

Não esqueça de viajar lento. Quem passa muito rápido por um país não tá com nada. Tem que ficar um tempo, ou nem conta. Não se vive direito o lugar, saca? Quanto menor a mochila, mais pontos você ganha. Inúmeras vezes fui julgada por levar uma mochila grande. “Como você consegue carregar isso? Por que você não joga fora algumas coisas?” E olha que desapeguei legal, perdi e doei um tanto. Ninguém parecia prestar atenção que eu carregava minha casa dentro dela, além de um monte de equipamentos para subir montanhas: barraca, colchonete, saco de dormir, bastões, botas, algumas roupas técnicas. Mas quem se interessa? E nem pense em comentar se você ousou fazer algum tour. Isso é tipo voltar dez casas no jogo. É coisa de… turista. Isso se esconde. Tudo se faz por conta própria, por favor. Guias são os inimigos número um do mochileiro, que não quer de jeito nenhum ser confundido com um… turista.

Mas ao fim e ao cabo, não somos todos estrangeiros passageiros?

O discurso padrão se repete: aparentemente 95% dos backpackers não gostam de grandes cidades pois são muito padronizadas e caras, a maioria também não carrega um guia no bolso, improvisa praticamente tudo e, é claro, pechincha até os centavos com a pobre senhorinha indígena que vive de artesanato. A regra é clara: quanto mais perrengue melhor. Mais legítimo será o rolê.

Julguem menos, companheiros viajantes. Não vamos confiscar a carteirinha roots de ninguém!

Não vou negar que cumpri com quase todos os critérios. Quando dei por mim, estava reproduzindo o mesmo discurso e várias atitudes. Afinal, a cultura, senhoras e senhores, é forte. Faz sentido por mil razões, especialmente a econômica. Todos queremos que a viagem dure mais. Logo, seguramos a grana o máximo possível. Também confesso que ir pelo caminho mais difícil é um baita tesão. Escolhas deliberadas pelo prazer da aventura, sim, mas nossa companheira de viagem também é a temperança.

Uma menina quase cochichou pra mim que tinha comprado uma passagem de avião. Outro praticamente pediu desculpas porque passou “rápido demais” pela Patagônia. Calma, gente. E se alguém quiser contratar um guia para conhecer a história das ruínas mais a fundo? E se eu gastar um pouco mais num restaurante legal? Olha só: tá liberado. Isso não te faz menos mochileira. O dinheiro é seu, você gerencia do jeito que quiser. E mais: é você quem carrega sua mochila. O tempo, veja bem, também é seu! E o desejo, então… todinho seu. A viagem é sua e intransferível.

Para quem ainda ficou apontando dedos ou querendo se encaixar como viajante independente em alguma caixinha: quem sabe alternar a prioridade dos critérios de vez em quando? Como por exemplo vivenciar e respeitar a cultura local? Ou o meio ambiente. Ou a saúde. Sim, isso às vezes pode ser menos barato. Mas será que não vale a pena? Se pergunte, periodicamente, sem neura, por que você está viajando. Como anda tratando os lugares e as pessoas que visita. Ou o que está aprendendo. O que leva e o que deixa pelo caminho?

Julguem menos, companheiros viajantes. Não vamos confiscar a carteirinha roots de ninguém.

A jornada é um lindo quebra-cabeças que você monta conforme o que fizer sentido. Não deem bola para os olhares de quem se acha mais safa porque deu mais checks na cartilha. Se perdoem, se escutem, sem constrangimento. Sigamos nos ajudando – e aos locais que nos acolhem. Compartilhem. Viajar é uma escultura, tipo a vida. A gente vai inventando de acordo com a ética de cada um.

 

Carolina De Marchi é viageira, jornalista, gestora de projetos e produtora cultural latino-americana. Aprendiz de poeta, amante de sotaques, pessoas e boas histórias. Poderia ser cônsul ou trabalhar no circo. Teima em (r)existir no Brasil, por ora

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