Onde estava essa maravilhosa história secreta da Mulher-Maravilha?
Poliamor, feminismo, luta pelo direito ao voto e à educação feminina: os bastidores da criação da super-heroína engrandecem sua existência e merecem ser tão famosos quanto ela
07.10.2020 | Por: Lia Bock
Sempre gostei da Mulher-Maravilha, desde a primeira fantasia que ganhei, quando tinha mais ou menos 4 anos, e da qual ainda tenho a capa. Capa? Sim, uma capinha vermelha com estrelas brancas. Eu sempre quis ser super-poderosa e, em idos dos anos 80, não havia muitas opções de heroínas em quem se inspirar. Depois, já jovem-aulta, foi uma certa preguiça (confesso) de me fantasiar de qualquer outra coisa que me fez fiel à super-heroína. Quando eu vi já era uma tradição, e a Mulher-Maravilha e eu estávamos ligadas para sempre.
Mesmo com essa conexão, nunca escondi minha insatisfação com o fato de ela ser certinha demais. Falo disso neste vídeo de 2017, quando fiz uma crítica ao filme recém-lançado. Ali, me veio forte um sentimento de que faltava à Mulher-Maravilha algo como o lado sombrio do Batman, a raiva do Super-Homem ou a acidez do Homem-Aranha. Por isso minha alegria em descobrir sua origem subversiva foi de fato imensa. Agora não falta mais nada pra eu amar minha super-heroína preferida com o coração tranquilo.
E como eu duvido que eu tenha sido a última a conhecer o bastidor da criação da Mulher-Maravilha, venho dividir essa maravilhosa história com vocês.
O filme que mudou tudo se chama Professor Marston e as Mulheres-Maravilhas e foi lançado em 2017, mas só chegou ao meu algoritmo agora. Uma história tão incrível que é impossível não perguntar como não fiquei sabendo disso antes. Pois a cineasta americana Angela Robinson, que roteirizou e dirigiu o filme, se fez a mesma pergunta quando teve acesso à história da criação da sua heroína preferida. “Ninguém no meu círculo tinha ouvido falar daquilo tudo”, disse numa entrevista na ocasião do lançamento. Me surpreende também que ela tenha demorado quase dez anos para conseguir tirar o filme do papel. Ninguém parecia muito interessado em revelar a história. Mas fato é que Angela honrou sua promessa e levou ao mundo o maravilhoso o bastidor em que a super-heroína foi criada e de quebra, revela aspectos sociais da época que não vemos nos livros de História.
Porque se eu te contar a história de um trisal que criava os filhos juntos e fazia festas de BDSM ousadas, com certeza você vai achar que eu estou falando da década de 80, ou dos dias atuais. Jamais vai pensar no começo da década de 40. Pois foi dessa família pouco usual e cheia de amor que saiu a Mulher-Maravilha, publicada pela primeira vez em 1941. Foi das esposas, Elizabeth e Olive, que saíram muitos dos detalhes da primeira heroína da DC. Da admiração pelas amazonas gregas que viviam numa terra só de mulheres aos braceletes, foram elas que junto com Marston deram corpo, história e inspiração para a Mulher-Maravilha. Duas feministas, sufragistas, casadas com o mesmo homem e que viveram juntas por mais 38 anos depois que ele morreu.
Claro que há detalhes no filme que são romantizados, como bem apontam Daniel Lopes e Alexandre Callari neste vídeo do Pipoca & Nanquim, de 2018. Mas a base da história da família, assim como da luta feminista da época, está toda lá.
Os blasés que me desculpem, mas pra mim foi mágico ver que na base da história da Mulher-Maravilha há muito mais do que a boa moça que quer salvar o mundo. Muito do BDSM ao qual o trisal era adepto esteve nos primeiros quadrinhos criados por Marston, assim como relações lésbicas e um feminismo latente. Coisas que, com os anos, foram sendo tiradas da história para deixá-la mais palatável, mais amável e mais recatada, como sempre dizem que as mulheres devem ser.
Pra quem quiser se aprofundar na trajetória da família de onde saiu a Mulher-Maravilha, vale a leitura do livro A história secreta da Mulher-Maravilha, de Jill Lepore, professora em Harvard e articulista da revista The New Yorker. Ali, há um trabalho minucioso de pesquisa que entrega um pouco mais do que mundo fez força pra não divulgar. Jill fez não só entrevistas com familiares dos três, como pesquisou intensamente o que estava se passando na época. Ela costura, em detalhes, como o movimento feminista da época que lutava pelo voto e pela independência da mulheres está no cerne na criação da primeira super-heroína da história. Há contextualizações muito interessantes no livro, além, é claro, de detalhes sobre os três personagens protagonistas do filme. A autora ainda traz a história de uma terceira mulher, que não está no filme: Marjorie Huntley, que participava da complexa relação e ajudava Marston a fazer os quadrinhos.
A Mulher-Maravilha foi inspirada em duas mulheres bissexuais, feministas da década de 40, que curtiam BDSM e que viveram a vida toda com um sujeito com quem tiveram cada uma dois filhos!
Mas Lia, ninguém falava dessa história antes? Claro que na cena dos quadrinhos o bastidor era conhecido, ao menos de orelhada, e na ocasião do lançamento do filme saíram algumas críticas. A Folha de S. Paulo deu uma nota, assim como a Veja e O Globo, mas nada de destaque e muito menos com as letras garrafais merecidas. Gente: a Mulher-Maravilha foi inspirada em duas mulheres bissexuais, ativistas feministas da década de 40, que curtiam BDSM e que viveram a vida toda com um sujeito com quem tiveram cada uma dois filhos! Não é pouca coisa pra uma heroína que chegou aos dias atuais com pecha de ingênua. A moça que, lembremos, no filme de Patty Jenkins (também de 2017) diz que sabe de sexo porque “leu nos livros”. A melhor matéria que encontrei foi a do El País, que coloca no título O ‘ménage à trois’ que deu origem à Mulher-Maravilha. Saiu antes de o filme ser lançado, mas coloca os pingos nos iis.
A história pessoal de cada um dos três elementos que compõem o trisal é bem interessante. William Marston, Elizabeth Holloway e Olive Byrne. William é um professor de psicologia, aliado do feminismo efervescente e, também, uma espécie de cientista-trambiqueiro-bom de lábia. No filme, ele ganha um ar de bom moço bonitão, mas o livro desmistifica essa faceta e dá mais complexidade à sua figura. Elizabeth é uma cientista (formada em psicologia e direito) que tem sua genialidade oprimida pelo sistema patriarcal vigente. Tentou estudar em Harvard, mas na época só homens eram aceitos, então foi redirecionada para Radcliffe, uma escola-irmã exclusiva para mulheres. E isso a tirava do sério. Juntos, ela e William criaram o detector de mentiras. Traquitana que eles não patentearam e, por isso, nunca levaram o crédito devido. Mas não é maravilhoso que eles tenham dado à Mulher-Maravilha o laço da verdade? Uma homenagem à criação do casal com notas de BDSM.
A maior curiosidade em torno de Olive é que ela é filha e sobrinha de duas grandes feministas da década de 30. Sua mãe, Ethel Byrne, e sua tia, a conhecida Margaret Senger, foram as criadoras do movimento de controle de natalidade nos EUA. Depois de verem uma vizinha morrer por causa de um aborto caseiro, dedicaram suas vidas a brigar pelos direitos sexuais das mulheres, batendo de frente com tudo o que se acreditava na época.
Não é muito maravilhoso tudo isso?
Ao longo das décadas, a Mulher-Maravilha sofreu diversas alterações. E, nesse ponto, é importante pontuar que William Marston morreu em 1947, apenas seis anos depois de criar a o quadrinho. De lá pra cá, a moça sofreu grandes mutações. Primeiro perdeu a parte sexualizada e a lésbica – era isso ou adeus à heroína. Depois, lhe tiraram seus poderes – acharam melhor ela apenas atuar pelo bem da nação. Mais tarde, já com seus poderes retomados, ganhou músculos e curvas, depois lhe puseram em roupas hiper-sensuais até definhar nas vendas. Como bem conta esta reportagem da Superinteressante, em 2011 a DC percebeu que não dava para continuar vendendo quadrinhos simplesmente tornando a Mulher-Maravilha mais e mais voluptuosa. Neste ponto, resolveram relançar toda a história e, assim, ela terminou a primeira década do ano 2000 como a semi-deusa guerreira que nasceu para ser.
Foi o filme de Patty que fez a heroína explodir em sucesso novamente. Guerreira, mas boa moça, a Mulher-Maravilha vivida por Gal Gadot ocupou o mundo nesses últimos três anos, do fast-fashion às lancheiras infantis, passando pelo carnaval. Aliás, em breve teremos uma sequência – o lançamento de Mulher-Maravilha 1984 foi adiado por causa da pandemia.
Não é exagero dizer que até conhecer a história da família Marston eu estava em paz com minha heroína, essa princesa que não precisa de um príncipe e faz graça tentando se adaptar ao mundo dos humanos. Mas agora inflei de orgulho e toda vez que comprar uma camisetinha (body, mochila, caneca, colcha, capinha de celular e afins) com o símbolo da semideusa de Themyscira vou respirar aliviada: por trás da amazona ingênua há uma história de liberdade, amor e luta por igualdade. Ufa.
Lia Bock é jornalista e mãe de quatro. É comentarista na CNN Brasil e autora dos livros Manual do Mimimi, do Casinho ao Casamento e Vice-versa e Meu Primeiro Livro, ambos pela Cia. das Letras
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