Os 10 anos de ‘Girls’ e o que mudou de lá pra cá

Se hoje existem 'Fleabag', 'I May Destroy You', 'Insecure', 'Broad City' e outras séries com protagonistas femininas antipáticas ou moralmente complexas, é por causa de Lena Dunham

11.05.2022  |  Por: Maria Clara Drummond

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Os 10 anos de ‘Girls’ e o que mudou de lá pra cá

“Girls”, série-fenômeno criada e estrelada por Lena Dunham, acabou de completar dez anos desde que foi ao ar pela primeira vez. Em 2012, o Instagram ainda não fazia parte das nossas vidas, usávamos mais o Facebook ou o Twitter. Já o último episódio da série foi alguns meses antes de estourar o movimento #MeToo, em 2017. De lá para cá, muita coisa mudou no mundo, no feminismo e na televisão. 

Se hoje existem “Fleabag”, “I May Destroy You”, “Insecure”, “Broad City” entre outras séries com protagonistas femininas antipáticas ou moralmente complexas, é por causa de “Girls”. A personagem Hannah Horvath é autocentrada, grosseira, sem noção, egoísta, preguiçosa. Não só isso, a personagem é filmada constantemente pelada, mesmo estando bem longe do padrão de beleza – ou, em bom português, sem meias palavras: é feia e gorda. 

Hannah ainda tem a ousadia de ser autoconfiante, sexual e aventureira. No episódio “One man’s trash”, a personagem tem um caso com um homem lindo & rico. É inclusive uma das únicas cenas de sexo da série que são realmente sexies, sem estranheza ou desconforto. Foi uma polêmica. Ninguém achou realista que um homem com tantos atributos seria atraído por uma menina como ela. É comum tanto em filmes quanto em séries o casal homem ogro/feio + mulher jovem/gata, mas não o contrário. 

Ora, os críticos do episódio claramente não entendem nada da natureza humana. A atração sexual é mais misteriosa do que fazem crer os anúncios de perfume e comédias românticas. E o contexto do encontro faz sentido psicológico: ele está solitário, carente, recém-divorciado, morando sozinho numa casa enorme, numa cidade nova, sem conhecer ninguém. Por que não se abriria para uma conexão sexual uma garota que bate à sua porta – e que, ainda por cima, é 20 anos mais jovem?!

Esse episódio exemplifica a misoginia inconsciente das críticas da série – mesmo aquelas que, em tese, tem boas intenções. “Girls” é muitas vezes problemática, mas tão problemática quanto outras séries escritas e protagonizadas por homens. E só reparar que o debate sobre diversidade é predominante em séries escritas por e para mulheres, em especial as com viés progressista, feminista. 

Não é segredo que eu sou uma grande fã de “Sex and the City”. Porém, acho que a série foi mais revolucionária ao tratar da relação das mulheres com a solteirice – três das quatro personagens de “SATC” apresentam reservas em relação à vontade de se casar. O sexo em si é meio careta. Em “Sex and the City”, todo mundo goza e o sexo é sempre vanilla (sexo anal é um tabu, por exemplo). Em Girls, é o oposto, o sexo é kinky, mas quase desconfortável, traduzindo bem a ambivalência feminina contemporânea em relação ao imperativo do gozo em tempos de sex-positive. 

As críticas tanto a “Girls” quanto a “Sex and the City” se situam num limbo entre observações certeiras acerca da falta de diversidade e a mais pura misoginia. Tanto Hannah quanto Carrie Bradshaw são gritantemente men-repellers, tanto em  aparência quanto em personalidade. Sarah Jessica Parker, embora tenha um corpo invejável, foi eleita a mulher menos sexy do mundo pela revista “Maxim”. As duas mulheres são autocentradas, moralmente falhas, propositalmente irritantes. E, sobretudo, não estão preocupadas com o “male gaze” – ou seja, o olhar masculino que, mesmo de modo inconsciente, molda o comportamento e aparência das mulheres heterossexuais. Hannah e Carrie querem ser amadas por um homem, mas não norteiam suas escolhas em busca da validação masculina. 

No piloto de “Girls”, Jessa, personagem interpretada por Jemima Kirke, está grávida e pretende fazer um aborto. No entanto, no episódio seguinte descobrimos que era alarme falso. É uma saída conservadora, que é compensada algumas temporadas adiante: Mimi-Rose Howard (Gillian Jacobs), nova namorada de Adam (Adam Driver), menciona seu aborto recém-feito de modo casual, quase en passant. “Nós estamos juntos há menos de dois meses, você queria ter um bebê?”, pergunta ela. “Talvez”, ele responde. “Então nós deveríamos ter um bebê porque talvez você queira ter um bebê agora?”

Hoje, o aborto corre o risco de deixar de ser legal nos Estados Unidos, com a possível reversão de “Roe vs. Wade”. O discurso de Mimi-Rose é centrado na agência soberana da mulher: ter um filho é uma responsabilidade enorme, é decisão exclusiva da mulher, uma vez que o cuidado também será feito majoritariamente pela mulher. Quem terá sua carreira prejudicada será a mulher, não o homem. E mesmo uma mulher em um relacionamento estável e com boas condições financeiras deveria ter o direito de abortar, se assim desejar. 

Na última temporada, alguns meses antes de estourar o #MeToo, Lena Dunham prova mais uma vez que é atenta ao zeitgeist com o estupendo episódio “American Bitch”. Hannah vai visitar um aclamado escritor que fora acusado de assédio sexual na internet. Chuck Palmer é uma figura meio Phillip Roth que mora em um amplo apartamento no Upper East Side cheio de fotografias posando com Woody Allen e Toni Morrison e prêmios Pen/Faulkner. É um embate intelectual: ele diz que não forçou nada, que no fundo é um nerd que perdeu a virgindade tarde demais, e que ficou deslumbrado com o sucesso tardio com o público feminino. De repente, há várias mulheres que parecem com modelos se jogando em cima dele. A sexualidade é uma área cinzenta, diz ele. “Estou cansada de áreas cinzentas”, responde Hannah. 

Por um lado, Hannah tem razão: os escândalos sexuais que foram divulgados naquele mesmo ano deixam evidente que não há zonas cinzentas quando há tamanha disparidade de poder. No entanto, escrevo esse texto ao mesmo tempo que sou inundada de memes sobre o caso Amber Heard & Johnny Depp. Nesses memes, Heard é enquadrada no estereótipo antigo da femme fatale manipuladora que usa seu poder sexual para destruir um homem inocente. Para a internet, Heard não pode ser manipuladora e vítima de abuso ao mesmo tempo. É preciso que exista um papel bem definido de vítima e algoz. Não há áreas cinzentas. Mas quem se beneficia dessa polarização quase nunca é a mulher, e sim o homem. 

A personagem Hannah é constantemente confundida com sua criadora e intérprete, Lena Dunham. As controvérsias da série, que na época falavam mais alto até mesmo que o conteúdo, surgem dessa área cinzenta. Isso não acontece com os demais comediantes que também interpretam versões de si mesmo tampouco com os escritores conhecidos por sua auto-ficção. Lena Dunham, com todos os seus erros e polêmicas, faz mais barulho por ser uma mulher que foge aos códigos da feminilidade correta. Que bom, pois assim serviu de abre-alas para toda uma nova leva de personagens femininas complexas, mesmo que desagradáveis.

Hollywood é tão fundada no nepotismo puro e simples que podemos dizer que se trata até de uma espécie de aristocracia, em que o estrelato é como um título de nobreza, levado de geração em geração, não necessariamente relacionado a talento. Lena Dunham não chegou onde chegou por meritocracia. É célebre a história de que ela só levou uma única folha de papel com um rascunho de história para sua reunião na HBO. E, ainda assim, aos 25 anos, conseguiu um espaço na mais prestigiosa emissora de televisão, atuando como atriz, roteirista e diretora. No entanto, seus pais são influentes no universo da arte contemporânea, não em Hollywood. Se for para falar de nepotismo, há outros exemplos muito mais gritantes, já que é assim que funciona toda a indústria, praticamente. Lena Dunham usufruiu de um nepotismo indie, digamos assim. 

 

Maria Clara Drummond é jornalista e escritora, autora dos romances “A Realidade Devia Ser Proibida” (Companhia das Letras, 2016), “A Festa É Minha e Eu Choro Se Eu Quiser” (Guarda Chuva, 2013) e “Os Coadjuvantes” (Companhia das Letras, 2022)

 

 

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