Os bastidores do mundo da música dos anos 70 até hoje

Batemos um papo com a jornalista inglesa Vivien Goldman sobre sua trajetória, o novo livro e o tradicional sexismo do universo musical

08.10.2019  |  Por: Márcia Scapaticio

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Os bastidores do mundo da música dos anos 70 até hoje

“A música tem sido minha parceira de dança por toda a vida.” Essa é uma das frases de efeito bem colocadas em Revenge of the She-Punks: A Feminist Music History from Poly Styrene to Pussy Riot (University of Texas Press, em inglês), livro de Vivien Goldman lançado em maio deste ano. A música tem sido nossa parceira, mas o jornalismo musical ainda roda em belos solos, como se escapasse durante a coreografia. Não porque as mulheres não escrevessem sobre música e sim porque o espaço de divulgação desses textos críticos sempre foi guiado pela visão dos homens, afinal, eles formavam as bandas e comandavam as redações. As garotas, no imaginário do rock, embora tocassem instrumentos e se envolvessem com música de diferentes modos, mantiveram-se atreladas à imagem da groupie, fã que desejava o cara da banda.

Livro de Vivien (ainda sem tradução para português)

A maioria das minhas bandas queridas na adolescência era formada por homens. Os caras que escreviam sobre música e faziam minha cabeça também eram. Por costume ou sem problematizar essa questão, não me mobilizei na época. Na graduação em jornalismo, ao fazer qualquer trabalho sobre música, meus entrevistados continuavam sendo homens. E nós?

Vivien Goldman é uma jornalista britânica em atividade desde os anos 70. Atuou como cronista do punk e do reggae e escreveu sobre outros gêneros nas revistas Sounds, Melody Maker e New Music Express até o começo dos anos 80. Entrevistou The Slits, Ornette Coleman, Brian Eno, Richard Hell, the B-52s, Patti Smith, Jimmy Cliff, Talking Heads, Chaka Khan. Resenhou discos e shows do The Clash e de David Bowie.

Em uma conversa por e-mail, ela contou que foi desafiador estar na “boyzone”, como se referiu à indústria musical roqueira dos anos 70 sendo jornalista e também quando publicou Bob Marley: Soul Rebel – Natural Mystic (1981).

Eles eram minha equipe, mas atitudes paternalistas os tornaram verdadeiros inimigos de gênero

A realidade das jornalistas não era das mais animadoras. Ela diz que diversas vezes ouviu opiniões não tão gentis e precisou se impor. Mas ela amava escrever. “A música é incrível e eu nunca pensei em parar.” A narrativa de Revenge of the She-Punks deixa claro que em sua experiência no Sounds, tabloide semanal britânico que circulou entre 1970 e 1991, observou uma tentativa de genocídio durante as reuniões de pauta. “Todos os escritores, homens e brancos, insistiam: ‘Mulheres não consomem música, mulheres não leem sobre música.’ Eles eram meus editores, minha equipe, mas essas atitudes paternalistas os tornaram verdadeiros inimigos de gênero.” Vivien ressalta que nem todos os seus companheiros de profissão estavam nesse campo minado, porém, a “maioria deles” estava.

Essa visão ultrapassou os anos 1970 e duas décadas depois disso ainda contaminava o mercado. Há alguns anos comecei uma busca pelos vendedores da loja de discos que frequentei em Piracicaba durante a adolescência, nos anos 90. Conversando com alguns deles, perguntei se pela loja não havia passado vendedoras mulheres. Em anos apenas duas foram contratadas, ambas para cuidar do segmento de sertanejo e pagode. A justificativa nos joga de volta no tempo: “A questão principal não foi termos escolhidos os homens… mas nunca termos encontrado mulheres com o mesmo interesse por música.”

Essa minha saga pelos vendedores de discos me levou a uma conversa com Ian Mackaye, da banda Fugazi. Ian responde ao amigo da loja e também aos editores de Vivien. Porque as minas estavam lá, nos espaços que lhes era permitido. E sim, elas gostavam de música e liam sobre música: “Quando falam em Washington DC, sempre mencionam os garotos. Diversas bandas de garotos. E é verdade. Mas as bandas não são a cena punk, a banda é a moeda. Talvez seja verdade que naquela época as bandas que chegavam ao palco eram formadas por garotos e as fotografias tiradas ressaltam esse lado. Mas se você me perguntar sobre a cena punk eu não penso em bandas. Mas sim no tempo que passávamos na frente da casa de shows ou nas lojas de discos. E nesse contexto estamos falando de garotos e garotas.”

O que salvou Vivien desse céu nublado foi a oportunidade de conhecer mulheres legais e inspiradoras, como Caroline Coon, sua mentora em ativismo artístico/político, que também cobria punk. E também as entrevistadas que preencheram suas laudas, como Gladys Knight, cantora de R&B, e a “divertidíssima” Stevie Nicks, do Fleetwood Mac. Ela fala ainda do fascínio em ouvir pela primeira vez Poly Styrene (X-Ray Spex) gritar: “Oh bondage, up yours!”, sabendo que o bondage referido não era estritamente ao visual do sadomasoquismo, mas um grito entendido por Vivien como a possibilidade de ser “parte de uma comunidade de garotas musicais criativas”.

Após o vislumbre, o questionamento: “Onde estavam as outras mulheres”? Eu estou no jornalismo musical e quem está ao meu redor? Agilizada, Vivien dá a letra. Em vez de desistir, “pensava em achar canais alternativos para meu trabalho”. E é sobre isso: esbarrar em mulheres inspiradoras, ajudar-se mutuamente. “Nossa vingança é a nossa complexa sobrevivência.”

 

Como foi seu começo no jornalismo musical?

Foi um desafio estar na nessa zona masculina da indústria do rock nos anos 70, quando comecei como jornalista, e na sequência, quando publiquei meu primeiro livro, em 1981. Havia poucas jornalistas mulheres cobrindo a cena, uma ali e outra aqui. Vivenciei muitas crises e confrontos. Mas eu adorava escrever. A música é incrível e eu nunca pensei em parar. A ideia era achar canais alternativos para meu trabalho.

Qual sua opinião sobre o momento das mulheres na música e no jornalismo?

Ainda é difícil, mas considero melhor do que no passado. As mulheres estão se reunindo em coletivos (há um movimento em Nova York no qual DJs estão se organizando em coletivos e questionando o modo com que mulheres foram vistas nessa área por muito tempo, tanto criativamente quanto em remuneração). Nesses coletivos vemos que, embora existam muitos desafios, as coisas estão mais fáceis. Bandas pioneiras formadas por mulheres voltaram a fazer shows, como Malaria!, na Alemanha, Bikini Kill, The Bush Teatras e eu, que acabei de gravar o meu primeiro disco produzido pelo Youth, da banda Killing Joke. Cito essas bandas pois não é um simples retorno, porque essas mulheres tiveram que encarar o ambiente hostil da indústria musical quando começaram. Sobreviveram a um grande “não são bem-vindas”e influenciam garotas ainda hoje.

E você nunca quis subir no palco? Estar do outro lado?

Meu pai era músico. Cantar em casa juntos fazia parte da rotina. Nunca pensei em tocar um instrumento, como nunca pensei em fazer shows, e acho que tinha a ver com o fato de ser mulher, de achar que isso não era pra mim. Mas com certeza não sou uma musicista frustrada, que escolheu o jornalismo por não estar em uma banda. Me considerava mais uma rata de estúdio. Gostava de compor e estar próxima das bandas e das pessoas da cena musical, o que me levou ao jornalismo.

Digital ou analógico? Você acha que a rede melhorou a troca sobre música?

Eu sou do tipo que não dispensa os encontros cara a cara. A conexão humana é o que definitivamente me alimenta, me mantém estimulada e conectada. Como na Rough Trade, (loja de discos em Nova York e Londres), onde as pessoas entravam e saíam o tempo todo, trocando ideias com as bandas, que também frequentavam a loja. Teoricamente, esse era um ambiente de vendas, mas não só. Era sobre vender e trocar ideias, fortalecer a comunidade criativa.

 

Márcia Scapaticio é jornalista cultural e criadora do projeto @sigaagendam

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