Os últimos românticos
O modismo da 'água bruta', a cruzada contra as vacinas, a viralização de hashtags ecologicamente corretas: quando hábitos conscientes revelam uma visão romanceada da natureza e o que está em jogo é uma realização pessoal
16.10.2018 | Por: Camila Régis
Camila Novello | Piscina
Um dos pilares do pensamento romântico é encarar a natureza como algo bom e puro. Filósofos escreveram textos a respeito das benesses de estar mais próximo de um “estado natural” e surgiram conceitos como o “bom selvagem”. Dizem que Maria Antonieta gostava de ir ao Petit Trianon admirar os jardins e respirar o ar do campo – além de fugir do quebra-pau de uma Paris próxima da Revolução Francesa. Hoje, os aristocratas da nossa era (herdeiros, celebridades, ricos escolarizados há três gerações) seguem aspirando a um convívio idílico com a natureza. Basta ver mansões em área de preservação ambiental e hortas orgânicas verticais em apartamentos caros.
Certa visão sobre o assunto segue usando lentes romanceadas. Acredito que dois pensamentos mediam a relação que parte desse extrato social estabelece com a Mãe Natureza: 1) uma parcela da elite acredita que o desequilíbrio que causamos na natureza será resolvido com mudanças de hábitos que impactam o estilo de vida individual das pessoas (ecobag, reciclar lixo, adotar o não comprar, canudinho de vidro, veganismo); e 2) outra parcela acha que qualquer artifício sintético desenvolvido pela ciência, na verdade, “abala” o “estado natural das coisas” (não tomar remédios alopáticos, não vacinar os filhos, não usar produtos industrializados). Às vezes, essas duas modalidades se interseccionam.
Raw water
Em nome de ter uma água “mais natural”, a última moda entre os endinheirados do Vale do Silício é consumir “raw water”, algo como “água bruta”. Na prática, trata-se de uma água retirada diretamente da natureza, que não recebe qualquer tipo de tratamento, filtragem ou esterilização. Em uma matéria do The New York Times, o mercado da água bruta já conta com startups como a Live Water, que vende 2,5 galões (cerca de dez litros) de água não tratada por US$ 36,99 (cerca de R$ 140). Algumas pessoas com quem conversei falaram: “Ah, mas minha avó tomava água da bica e não morreu por isso.” Sim, mas sua avó provavelmente bebia essa água de graça e tinha um filtro de barro de casa.
Os defensores do comércio de água bruta acreditam que o tratamento sanitário dado à água retira dela “nutrientes e probióticos” importantes. No discurso dessas empresas, a água tratada que bebemos é uma “água morta”. O que eles vendem seria uma “água viva”. Entretanto, é uma água com prazo de validade visível: seus vendedores não titubeiam em dizer que depois de alguns meses a água se tornará verde, pois esse é “seu ciclo natural”. O que eles esquecem é que a maior função da água é hidratar, não nutrir (algo que conseguimos via alimentação). No fim, é como lamber uma pedra para absorver silício. Pouco eficaz e, dependendo do caso, perigoso.
A água tratada é chave na prevenção de doenças que dizimam pessoas pobres, como a cólera e a disenteria. Esse tipo de prática não é só um problema para quem bebe a água bruta. Pessoas que entram em contato com elas também podem adquirir doenças. O curioso é que se trata de uma mentalidade (água tratada faz mal) que aliou adeptos tanto do espectro político da esquerda quanto da direita. Na alt-right americana, há quem diga que o flúor da água serve para deixar a população “mais dócil”; entre os mais ripongos, é uma questão de “resistência” à indústria em nome de uma vida natural.
Contra a vacina e a indústria farmacêutica
No Brasil, acompanhando uma tendência da Europa e dos Estados Unidos, um movimento análogo se articula em relação às campanhas de imunização, ou seja, às vacinas. Segundo uma matéria da BBC, o movimento ganhou força na última década, principalmente nas classes A e B. “Pelos dados que temos, são pessoas que têm acesso a informação e levantam a associação entre a vacinação e algumas patologias, apesar de muitos estudos comprovarem que essa relação não existe”, disse à BBC Brasil José Cássio de Moraes, especialista em imunização e professor da Faculdade de Ciências Médicas da Santa Casa de São Paulo.
A cruzada contemporânea contra as vacinas começou com o ex-médico britânico Andrew Wakefield, autor de uma pesquisa duvidosa, feita com apenas 12 crianças, que estabeleceu uma relação entre a vacina tríplice viral (contra sarampo, rubéola e caxumba) e o autismo. Em 2010, ele perdeu seu registro médico no Reino Unido. Há quem diga que o movimento contribuiu com o recente surto de sarampo na Europa e o medo do ressurgimento de doenças praticamente erradicadas, como a poliomielite, volta a rondar órgãos de saúde.
No Brasil, pais e mães com filhos em escolas construtivistas se aliam em pensamento a figuras religiosas que desconfiam da eficácia das vacinas. Nesse imbróglio, outro medo alimentado é o de “não contribuir com o lucro da indústria farmacêutica”, o que em terras brasileiras não faz muito sentido. Grande parte das vacinas desenvolvidas no país é feita por laboratórios públicos, como o Instituto Butantan, e o objetivo final não é propriamente comercial. Nossas taxas de vacinação vêm caindo, contudo, e isso tem a ver com ricos amalucados apenas em parte – estão mais relacionadas à escassez de recursos e falta de abastecimento de vacinas em postos públicos.
Vida natural via hashtag
Qualquer pessoa que tem uma conta no Instagram já se deparou com alguma tendência de “hábito consciente”, dicas de “saúde e bem-estar”, novas dietas pouco estudadas e outras iniciativas sem muita (ou nenhuma) comprovação científica. São comportamentos, em geral relacionados a uma hashtag, que prometem uma vida mais saudável, natural ou ecologicamente correta. Um movimento recente nesse sentido foi o #paredechupar, um vídeo com artistas globais falando frases de duplo sentido até que se revela uma campanha contra o uso de canudinho. Nos Estados Unidos, Starbucks e parques da Disney já prometeram que vão proibir a distribuição de canudos descartáveis de plástico e a campanha #stopsucking também fez sucesso nas redes sociais de lá com a ajuda de famosos como Russell Crowe e Tom Brady.
Tratado como pesadelo ambiental (o que de fato é: centenas de milhões são descartados todos os dias), o canudo de plástico acaba de ser proibido na cidade do Rio de Janeiro. Agora, é permitido usar canudo de papel reciclado ou biodegradável, com embalagens feitas dos mesmos materiais. Ou seja, continuamos produzindo canudos. Há ainda a possibilidade de comprar um canudinho de vidro com capa e escovinha por R$ 47 na internet. No Twitter, já há relatos de estabelecimentos que tiveram a ideia genial de dar copos descartáveis no lugar de canudos, para evitar uma multa de R$ 6 mil. Sem grande surpresa, poucos dias depois o debate passou para o campo de batalha moral, após uma blogueira com deficiência física contestar a decisão e dizer que algumas pessoas não podem viver sem canudinho. A internet faz a gente tomar decisões difíceis (despoluir os oceanos ou permitir a autonomia de pessoas com deficiência?), como se as alternativas se excluíssem mutuamente.
Muito rápido, a discussão, que poderia levar ao debate sobre nossa dependência de plásticos descartáveis ou a regulamentações ambientais sérias, recebeu o verniz de frivolidade de quem se interessa pelo ar puro do Petit Trianon. No limite, certas preocupações com a natureza, ou com o “estado natural das coisas”, mostram que o que está em jogo é uma realização pessoal. Trata-se da crença em um estilo de vida que prega a importância das escolhas particulares, levando pouco em consideração os impactos das ações de grandes empresas privadas (as verdadeiras vilãs, convenhamos) e do Estado. Cria-se a busca por alternativas julgadas como moralmente ou eticamente corretas – mesmo que essas alternativas mudem apenas a vida de quem decidiu segui-las.
Camila Régis é jornalista que cobre literatura e artes plásticas, e estuda letras/alemão na USP
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