Para viver (e morrer) melhor

O que a polêmica em torno do falecimento do modelo Thales Cotta na SPFW nos ensina sobre vida e morte

02.05.2019  |  Por: Sandra Soares

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Para viver (e morrer) melhor

Gabriela Silveira | Piscina

A pergunta é pertinente: a semana de moda de São Paulo deveria ter sido cancelada depois do desfalecimento (seguido de morte) do modelo Thales Cotta durante um desfile? Mas é também complexa, já que envolve variáveis, e portanto não pode ser respondida rapidamente com sim ou não. Perguntas complexas exigem reflexão. E nessa hora, o melhor é buscar no passado histórias que possam ajudar a elucidar o presente.

Foi assim que a morte de Thales me fez lembrar de Adílio Cabral dos Santos, vendedor ambulante que, em 2015, perdeu a vida ao ser atingido por um trem em Madureira enquanto tentava atravessar a linha férrea. A morte de Adílio ganhou visibilidade graças à inacreditável decisão da Supervia, empresa responsável pela gestão do tráfego ferroviário no Rio de Janeiro, de permitir a passagem de um trem sobre os restos mortais sob o argumento de evitar o “risco de se criar um problema maior e mais grave com a retenção de diversos trens”. No calor da polêmica deflagrada pela decisão, a empresa tratou logo de explicar que a máquina que trafegou sobre o morto “tinha altura mais do que suficiente para fazê-lo sem risco de atingir e vilipendiar a vítima” (as frases foram retiradas do comunicado divulgado pela Supervia na época).

Thales também me fez pensar no vídeo gravado e publicado no ano passado pelo youtuber americano Logan Paul (19 milhões de seguidores) que mostra o corpo de um homem pendurado pelo pescoço em uma árvore na “floresta dos suicídios” (a floresta Aokigahara, no Japão, é “palco” de cerca de 100 suicídios por ano, segundo estimativas). O vídeo foi muito criticado, o que fez o autor o retirar do ar e pedir desculpas pela falta de sensibilidade com algo tão dramático.

Por fim, a morte de Thales também me levou de volta ao episódio da polêmica selfie de um homem diante do atropelamento de uma turista canadense por um trem na estação de Piacenza, na Itália, em junho de 2018. Abordado pela polícia, o sujeito que aparece fazendo V com os dedos na frente da cena de resgate foi obrigado a apagar a selfie, mas a situação, registrada por outro fotógrafo (que fez a foto da foto), virou post no Facebook publicado como um alerta para a “nossa perda de senso ético”.

O que a história de Thales, Adílio, do japonês suicida e da mulher canadense têm em comum? O fato da tragicidade ter sido tratada com irreverência por algumas pessoas e isso ter provocado (ainda bem!) comoção em outras. Uso a palavra irreverente aqui em seu sentido mais direto: falta de reverência, ou seja, de respeito, de consideração.

De uma morte em diante, nada mais será como antes

Já faz tempo que temos deixado de reverenciar a morte. Não é à toa que os velórios são cada vez mais curtos. A pressa nos rituais de despedida evidenciam nossa dificuldade de lidar com a finitude. Nos hospitais, aquele que morre deve sair pela porta de serviço de forma a não chocar os vivos (quem já perdeu alguém num centro de saúde deve saber que o necrotério fica quase sempre no subsolo). Lidamos com a morte com superficialidade. Afinal, como explicar que a modelo Caroline Bittencourt, morta na semana passada num acidente de barco, não pare de ganhar seguidores nas redes sociais desde o seu desaparecimento? Deixamos de reconhecer a morte no seu sentido dramático, evitamos encará-la como aquilo que ela realmente é: o fim.

Justamente por ser a experiência mais definitiva, aquela da qual ninguém volta para contar como foi, a morte é território do simbólico. Símbolos ajudam quem perdeu uma pessoa querida a elaborar o luto, que nada mais é que construir uma narrativa particular, íntima, que dê conta de acomodar dentro da gente o inexplicável, o incompreensível, o vazio (frases como “ele descansou” ou “ele está com Deus agora” são ofertas genéricas de um discurso que possa acalmar o coração). Na busca por sentido e conforto, colocamos símbolos onde houve morte (cruzes nas estradas, bandeiras em meio mastro nas cidades, flores nas sepulturas) para marcar que a (nossa) paisagem mudou. De uma morte em diante, nada mais será como antes.

É justamente por toda morte ser simbólica (cada morte evidencia a possibilidade e a certeza da nossa própria morte) que o descaso nos ofende. Vida e morte são dois lados de uma mesma moeda. São inseparáveis. E por isso deixar de valorizar uma e é deixar de valorizar a outra e vice-versa.

Os modelos que continuaram a ir e vir na passarela depois da convulsão de Thales e os trens que seguiram seu caminho sob o corpo de Adilson nos incomodam não apenas porque desrespeitam Thales e Adilson, ou seus parentes e amigos, mas também porque desrespeitam cada um de nós. “Vida que segue” sem prestigiar a morte (ou a possibilidade dela) afronta o pacto coletivo que um dia nós humanos fizemos: o reconhecimento da vida como soberana – e, portanto, da morte como soberana também.

E daí voltamos à pergunta inicial: a semana de moda de São Paulo deveria ter sido cancelada depois da morte de Thales? Depois de muito pensar, cheguei à conclusão de que se a decisão fosse minha eu teria parado o evento por algumas horas de maneira a, junto com os inúmeros profissionais envolvidos, criar outras condições de continuidade. Condições que reconhecessem que houve uma morte com toda a solenidade que a situação merece. Naquele dia os desfiles poderiam ter sido realizados sem música, por exemplo. Poderia ter havido (será que houve?) o tradicional minuto de silêncio, importante por garantir a comunhão de uma perda.

Mas o importante dessa discussão é também o fato de que nunca estamos preparados para lidar com a morte. Conversar mais sobre o morrer é importante para garantir esse preparo, aliás. E claro que opinar é fácil. Mais fácil ainda à distância dos acontecimentos, no tempo e no espaço. A decisão dos organizadores da semana de moda tem a minha compreensão e o meu respeito. Mas como ativista da causa do luto, apenas lamento a irreverência diante do morrer. E comemoro o barulho causado por ela, porque é fundamental que sigamos pensando, refletindo e aprendendo com as experiências.

Então, vamos falar sobre a morte, sobre o luto?

 

Sandra Soares é jornalista, psicanalista em formação e cocriadora do projeto “Vamos Falar Sobre o Luto?

 

 

 

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