Pela visibilidade das escritoras negras
Única mulher finalista no prêmio Jabuti de HQ, Sirlene Barbosa escreve para dar voz às autoras 'invisíveis', como Carolina de Jesus
12.11.2017 | Por: Audrey Furlaneto
Sirlene Barbosa é professora da rede municipal de São Paulo. Já ensinou de crianças a professores. Hoje, dá aulas a adultos em Itaquera, na Zona Leste de São Paulo, e lhe sobra pouco tempo, ligeiros 15 minutos às vezes, entre uma aula e outra. Chega em casa quase sempre perto das 23h para partir cedo na manhã seguinte, rumo outra vez aos alunos. Na apertada rotina, Sirlene escreveu um livro.
Virou finalista do prêmio Jabuti, o principal da literatura brasileira, na categoria HQ, gênero que, neste ano, pela primeira vez, ganhou premiação específica. Aos 36 anos, foi a única mulher na final dos quadrinhos. E seu livro é sobre uma mulher — e negra, como Sirlene.
Carolina, a HQ sobre Carolina de Jesus (1914-1977), não venceu o prêmio, que será entregue no próximo dia 30, em São Paulo. Sua autora, por outro lado, já reconhece o valor da indicação. “Esse tipo de reconhecimento é de suma importância, sobretudo em se tratando de um livro de quadrinhos — um gênero em que predominam os homens — feito por uma mulher negra da periferia de São Paulo. E mais: um livro que conta a história de outra negra, pobre, de favela. Se eu queria ganhar? Obviamente. Mas não foi por isso que fizemos o livro.”
Sirlene escreveu o roteiro, e o marido, João Pinheiro, ilustrou a história. Levaram quatro anos para finalizar o livro, cujo projeto nasceu das aulas e pesquisas da professora paulista. Certa feita, nos idos de 2014, quando dava aula a crianças e jovens, parou para avaliar o acervo da biblioteca da escola.
Era muito bom. Vasto. Quinze mil títulos — apenas 40 com personagens ou autores negros. Embrenhou-se na coleção. Notou que, na nova leva de livros canônicos que chegavam à biblioteca naquele ano, havia dois únicos exemplares do clássico Quarto de Despejo: Diário de uma Favelada, a obra-prima de Carolina de Jesus.
Era justamente o ano do centenário da autora, e sua presença soava no mínimo mirrada ante, por exemplo, os 40 novos exemplares de Ferreira Gullar, os muitos tantos de Benjamin Moser, entre outros autores homens. “Veja: não estou criticando-os. São excelentes escritores, e é muito importante que estejam na biblioteca de uma escola. Mas não pude deixar de perguntar: onde estão as mulheres? As negras? Os negros? Os latino-americanos?”

Foto: Acervo pessoal
Completou a indignação da professora o que ouvira num curso de formação que deu para professores à época: de 40, cinco já tinham ouvido falar de Carolina de Jesus. Nenhum havia apresentado ou lido o livro em sala de aula. “Fiquei estarrecida. Era o centenário dela, uma escritora mulher potente, num momento potente para as mulheres, mas invisível ainda assim.”
Sirlene emenda a já acelerada fala, para reafirmar o valor da escritora tema de seu livro: “Por conta de sua força, criou sozinha três filhos. Foi chefa de família, mais do que mãe solteira. Reciclava papel para poder escrever e, se soube escrever, foi porque sua mãe, uma lavadeira, conseguiu que uma patroa pagasse à garota algum estudo. Mas pouco. Carolina teve não mais do que dois anos de formação na escola.” E bastou-lhe para escrever seu Quarto de Despejo, descoberto pelo jornalista Audálio Dantas em 1960 e, hoje, publicado em mais de dez países.
Carolina, na versão para HQ de Sirlene, recobra o posto de heroína da escritora, retratando desde a infância em Minas Gerais e a vida severina na favela de São Paulo até os textos e, por fim, o esquecimento. “Com o livro, quis reafirmar que mulheres escrevem. E que mulheres negras escrevem. E que mulheres negras e de favela escrevem. O que precisamos, todas nós, é aparecer mais.”
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