Pelo direito de não procriar

Em 'Contra os Filhos', recém-publicado no Brasil, a escritora chilena Lina Meruane questiona o modelo atual de maternidade

30.08.2018  |  Por: Maria Clara Drummond

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Pelo direito de não procriar

Eu levei um susto quando, antes de completar 30 anos, vi-me cercada por mães. Até então, eu acreditava que filhos não faziam parte do planos das jovens mulheres da minha convivência. É verdade que não falávamos sobre isso, mas vivendo num ambiente não só progressista, como altamente politizado, eu deduzia que a maternidade só seria algo a se considerar pelo menos dali a meia década – se tanto! É para essa parcela da população feminina que escreve a autora chilena Lina Meruane, que acabou de lançar por aqui Contra os Filhos, pela editora Todavia.

“Para quem é conservador, ter vários filhos nunca deixou de ser uma opção. Portanto, nada de novo para essas pessoas. Mas percebo um retrocesso entre quem é progressista”, conta a escritora em entrevista para Hysteria. “Acredito que a maior pressão para assumir a maternidade seja um backlash contra as conquistas do feminismo, a maior independência das mulheres e seus avanços no ambiente de trabalho. É uma forma de devolvê-las para casa.”

Na França do século XVIII, por exemplo, as mulheres de alta sociedade não eram grandes entusiastas da maternidade. Elas contavam com amas de leite a quem entregavam os filhos recém-nascidos, e quando estes cresciam, eram transferidos aos instrutores, e posteriormente aos internatos. Enquanto isso, as mulheres se dedicavam aos seus maridos e à sociedade. Depois da Revolução Francesa, esse esquema passou incluir também as mulheres de classe média, burguesas. “A imposição da maternidade oscila ao longo da História. Nos tempos de guerra, não era bom para a nação que as mulheres procriassem, pois alguém precisava trabalhar enquanto os homens lutavam. Nesses períodos, havia uma pausa na imposição para que as mulheres tivessem filhos. E, agora, percebo que essa imposição volta a atingir um pico”, continua Meruane.

Contra os Filhos é, sobretudo, uma crítica ferrenha às exigências da maternidade moderna que atingem principalmente o setor progressista, como fraldas de pano, parto sem anestesia, prolongação da lactação, e o aumento de atividades obrigatórias para uma criança pequena. “Não à toa, essas exigências atingem justamente as mães que trabalham, que passam a ficar cada vez mais em casa”, analisa a autora. “Ao longo dos séculos, as crianças passaram de mini-adultos que ajudavam nas tarefas de casa a mini-tiranos, principalmente depois da invenção da adolescência, que é relativamente recente, e deixou os filhos ainda mais dependentes dos pais – ou melhor, da mãe.”

Esse novo modus operandi de viver a maternidade seria em parte resultante da atuação das chamadas mães militantes, contra quem a escritora solta o verbo: “As mães militantes costumam reagir com virulência diante da negativa de ter filhos. Sentem-se julgadas, algumas, sobretudo aquelas que em mais de uma ocasião se questionaram em segredo o que ter filhos significava para elas e o que eles ainda impedem; essas ou aquelas devem ter feito um enorme esforço de racionalização para aceitar suas vidas pós-filhos. Enfrentar a aprazível ou exultante certeza das mulheres-sem-filhos representa uma contrariedade para as mães que duvidam ou se arrependem sem se atrever a dizê-lo (a dizê-los a si mesmas e aos outros)”, escreve Lina Meruane na primeira parte de Contra os Filhos.

Apesar do tom polemista, o livro faz questão de apontar que o principal problema continua sendo a ausência de medidas estatais que facilitariam a vida da mulher, como hospitais para um parto decente, creches e escolas públicas de qualidade, distribuição de métodos contraceptivos e a legalização do aborto. Esse enfoque nas políticas públicas alivia o tom ríspido do ensaio que poderia incomodar – ou até mesmo enfurecer – as mulheres que optaram por serem mães. “O problema é mais estrutural que particular”, opina a escritora.

Lina Meruane

Contra os Filhos é um ensaio bastante livre que não tem como pretensão encerrar o assunto da não-maternidade. Lina Meruane é escritora de ficção, autora do elogiado Sangue no Olho (Cosac Naify), e seu texto ensaístico tem uma voz literária forte, marcada, fluida. Não enfatiza, por exemplo, a corrente antinatalista que diz que não é ético colocar filhos biológicos num mundo cheio de sofrimentos e atormentado por crescentes crises financeira e ecológica – quando lhe perguntei sobre esse movimento, ela respondeu: “O mundo sempre esteve em crise. Portanto, não acredito que seja essa a principal questão.” Tampouco se atém a dados e porcentagem de pesquisas sobre o assunto.

Por outro lado, oferece amplo contexto histórico para embasar seu ponto de que, ao contrário do que poderia parecer a princípio, com os movimentos ChildFree e NoMo (NotMother), estamos sim mais propícias a ter filhos automaticamente, apenas porque a sociedade diz que sim. A ênfase e a coragem com que o ensaio é escrito deixa clara a resistência das mulheres que ousam dizer NÃO.

 

 

 

 

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