Pero que las hay, las hay

No Dia das Bruxas, um pouco de história, de dia a dia e o encantamento por personagens estranhas mas independentes

31.10.2019  |  Por: Isabel Guéron

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Pero que las hay, las hay

Dia das Bruxas. Prefiro chamar assim. Porque Halloween me bate num lugar de entreguismo cultural que mesmo sem querer minha alma tupiniquim rejeita. Sou dessas. Hoje ainda assei uns pães de queijo meio a contragosto para o pequeno levar para a festinha macabra na escola.

– É só na aula de inglês, mãe.

Ele disse antes que eu questionasse.

– E eu não quero ir de fantasia.

Nessa hora provavelmente a criança já estava com medo de ter que ir fantasiada de mula sem cabeça, curupira ou qualquer outro ser do folclore brasileiro, para compensar. Já sabe bem a dor e a delícia de ter
essa mãe aqui. Dia das Bruxas é melhor. Porque eu sempre tive uma queda por elas. Quando montamos Nem Só de Caviar Viviam João e Maria – versão do clássico dos irmãos Grimm que meu irmão escreveu, aos 9 anos – eu quis ser a bruxa.

– Mas você não prefere ser a Maria? Ela é a principal.

– Não, a Maria não faz nada. Prefiro ser a bruxa, que tem a casa dela, que faz a comida dela e usa uma roupa preta com estrelas prateadas.

– Mas a bruxa morre no final!

– Mesmo assim. Eu prefiro a bruxa.

Assim foi. Convidamos uma prima para ser a Maria e fizemos nossa peça no quintal. Recortamos as estrelas pro figurino e ainda completei com uma capa preta que achei na mala de fantasias. E eu voei na vassoura, enfeiticei João e sua irmã com uma mágica de purpurina e prendi os dois na minha gaiola. Depois eles conseguiram escapar, jogaram o feitiço contra a feiticeira e foram ser felizes, enquanto eu jazia morta no chão de lajotas, esperando a hora de ressuscitar para receber os aplausos. É lógico que a bruxa era mais legal! E segui, infância adentro, afeiçoada a elas. Alceia e Memeia das revistinhas da Luluzinha naquela casinha fofa na floresta; a Cuca que era meio limitada e fazia maldades que não davam muito certo; a Bruxa Velha do Oeste, clássica nariguda de cara verde; a Bruxa possessiva e carente de Rapunzel e até mesmo a Madrasta, linda e má na sua vaidade extrema. Todas elas, eu reparava, tinham em comum uma certa solidão. Um desacerto com os padrões e sobretudo o poder da magia, a arte de mudar o que está ao redor de acordo com sua própria vontade. O empoderamento que a gente busca, há séculos.

Entre os séculos XIV e XVII, a fogueira era política e social

Historicamente, as Bruxas existiram. E para além de relatos fantasiosos e estereotipados da figura da velha feia, louca e feiticeira, o que sabemos é que entre os séculos XIV e XVII milhares de mulheres foram torturadas, decapitadas e jogadas na fogueira acusadas de feitiçaria. Julgadas em processos eclesiásticos, cujo principal objetivo era a manutenção de uma soberania religiosa sobre qualquer liberdade de crença. O próprio termo bruxa vem do verbo italiano bruciare, que significa queimar. A existência dessas mulheres já era uma condenação. Observando os registros dos processos e execuções, o que se vê é uma lista de feminicídio com acusações subjetivas. Mulheres condenadas por terem grande conhecimento da natureza,
curandeiras que remediavam com ervas; outras condenadas por terem “enfeitiçado” homens casados. Mulheres que davam à luz crianças com alguma má formação eram acusadas de terem filho do demônio e
jogadas na fogueira. Algumas apenas por viverem sozinhas, sem marido e filhos, eram acusadas de bruxaria por algum vizinho, e isso bastava para a condenação. A fogueira era política e social. As acusações baseadas em delações numa época dominada por medos. As confissões todas obtidas sob tortura. A mulher autônoma, com desejos e crenças próprias, a existência feminina que não estivesse atrelada a um homem era castigada. Ainda (ou sobretudo) que essa mulher fosse uma heroína corajosa e lutasse por uma causa maior, como foi o caso de Joana D’Arc, a mártir francesa assassinada na fogueira, aos 19 anos.

Hoje penso se apagamos essa fogueira realmente ou se ela não segue ardendo em outros formatos. Porque ainda temos que nos afirmar como fêmeas independentes a todo momento. Porque há cinco anos, no Brasil, uma mulher foi morta e espancada por uma multidão depois de ter sua imagem espalhada na internet, associada ao retrato falado de uma suposta criminosa acusada de rituais satânicos. Horas depois de sua morte, sua inocência foi comprovada. Porque outra mulher, neste país e neste século, foi torturada, morta e seus restos jogados aos cães. Seu crime foi ter um filho com um jogador de futebol e exigir o reconhecimento da paternidade. Porque uma adolescente foi perseguida e apedrejada no interior do Rio de Janeiro apenas por usar as vestes brancas, o turbante e as guias da religião que pratica. Porque uma deputada, negra e homossexual, eleita para defender as minorias, foi executada a caminho de casa num crime político, com o objetivo de silenciá-la.

Mas nem sempre a morte silencia. São séculos de perseguição e patriarcado. Aprendemos a andar sobre as brasas, estamos em todas as encruzilhadas escolhendo para onde ir. Quando arrancam uma flor, ela já espalhou suas sementes. Sim, nós sabemos o quanto é difícil. O peso que é cumprir tudo que nos exigem. A imposição social de casar e procriar. Ser uma mãe presente como se não trabalhasse e trabalhar como se não tivesse filho. Sentar direito com as pernas fechadas, vestir-se adequadamente para não ser estuprada. Fugir de assédio, ganhar menos trabalhando igual, ser impedida de falar, ser interrompida na reunião. Mas a gente segue, perseverando, sobrevivendo, modificando. E eu, confesso, há muito tempo recuso a fantasia de Mulher-Maravilha que tentam vestir em mim. Prefiro me vestir de bruxa, compreendendo minha intuitiva predileção infantil pelas personagens estranhas mas independentes. Não que eu acredite, mas que elas existem, existem.

 

Isabel Guéron é atriz e escritora

1 Comentários

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Uma resposta para “Pero que las hay, las hay”

  1. Francinete disse:

    Texto maravilhoso Isabel!
    Me identifiquei totalmente, esse negócio de absorver cultura americana tb me incomoda.

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