Pirei na Copa | Cega em tiroteio

Como lidar, no meio de um jogo tenso, com uma mãe que faz as mesmas perguntas de quatro em quatro anos

22.06.2018  |  Por: Luisa Mascarenhas

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Pirei na Copa | Cega em tiroteio

— Vai, menino! Ah, não… Não acredito que esse bonitinho perdeu essa chance.

— Esse aí é o Coutinho, mãe.

— Vai! Corre, rapaz! Parou por quê??? Tá cansadinho? Ia ser gol, caramba!

— Ele estava impedido, mãe, não adiantava mais correr.

— Como é mesmo essa coisa de impedimento?

— Eu te explico isso a cada quatro anos, Fátima, você sempre esquece. Me recuso a explicar de novo.

— Eu não estava falando com você, Rodolfo, eu perguntei pro Jorginho.

— Mãe, que diferença faz saber isso? Você aprende e logo em seguida pergunta a mesma coisa.

— Drica, eu sou uma senhora, não dá pra achar que tenho a mesma memória que vocês. Já se foi o tempo.

— Você nunca aprendeu as regras, Fátima, nem quando era nova. De quatro em quatro anos você faz as mesmas perguntas.

— Eu estou conversando com meus filhos, Rodolfo, se for para entrar na conversa é pra contribuir.

— Nossos filhos…

— Quem é esse que tomou falta?

— O Neymar, mãe. Só isso.

— É que tô sem óculos e ele tirou o penacho. Complicou. Caracaaa, sai daí Neymar!!! Tira a bola da área, pelamooor!!! O que deu nele, gente?

— Ele tá tentando fazer gol…

— Gol contra?

— A gente agora está jogando do outro lado. Esqueceu?

— Ah é, filho… Deu branco. É que tô nervosa. Esse gol não sai nunca! Não tenho coração pra Copa do Mundo, não. Não entendo como os técnicos sobrevivem. Se fosse eu, seria um stent novo por jogo. E esse jogador aí, hein, tá mais perdido que cego em tiroteio…

— Ele não tá perdido. Ele tá armando a jogada, pensando pra quem manda a bola. Normal.

— Três séculos para decidir um passe, Adriana? Faça-me o favor. O Tite devia trocar esse cara.

— Olha a blusa branca, mãe. Ele não é do Brasil.

— Ainda bem, lerdo que só. Vai, Firmino! Gostei desse Firmino. Ah, não… Escanteio.

— Tiro de meta, mãe…

— Sempre me confundo. Qual é mesmo a diferença?

— Tenha dó, Fátima, já te ensinei isso umas mil vezes.

— Perguntei para os meus filhos…

— Mãe, você jura que quer entender de futebol a essa altura do campeonato?

— Nunca é tarde para começar, Jorginho… Isso é preconceito com idosos, sabia?

— Não é, não. É preconceito com gente que só vê futebol de quatro em quatro anos e resolve “relembrar” tudo que na verdade nem chegou a aprender. Você só gosta de futebol na Copa, e mesmo assim só assiste aos jogos do Brasil. Fica difícil.

— Ih, você tá ficando igual ao seu pai, hein. Não posso gostar de Copa e querer entender o jogo? Tá me podando?

— Esquece isso, mãe. Vê e reza. Já tá bom.

— Até tu, Drica? Nossa, crio meus filhos com amor, faço tudo por eles e é isso que recebo.

— Mãe, não faz cena. A gente podia estar vendo com nossos amigos, mas estamos aqui, não estamos?

— Olha ela… Ainda acha que tá fazendo favor vindo aqui filar café da manhã e almoço, se entupir de cerveja artesanal e ficar perto da família.

— Não é nada disso, mãezinha. Vem cá minha idosinha linda e carente, deixa eu te dar um chamego…

— Agora sim… Gostei, filhota. Jorginho, pode vir aqui chamegar também. Larga esse chato do seu pai aí rosnando sozinho. Hmm… Que delícia, gente… Ih, olha lá, o Tite não tá com cara boa, não.

— Aquele não é o Tite, mãe…

— Falando nesse tom, parece até que eu tô gagá, filha. O cara é parecido com o Tite, o que eu posso fazer? Vocês deviam me respeitar mais.

— E você precisa respeitar mais o jogo. A gente tá querendo assistir!

— Tá bom. Assistir e rezar muito pelo visto… O Neymar tá irritado demais, credo. Vocês viram os palavrões que ele falou?

— Também, o Brasil tá tentando, tentando, e nada do gol sair! Esquenta a cabeça de qualquer um.

Shhhh. Peraí, Rodolfo, tô tentando entender o comentário do Ronaldinho. Fala pra fora, menino!!! Alguém tem que avisar que esse moço precisa de uma fono…

— Gente, que jogo sofrido! Vai, Jesus, faz alguma coisa!

— Isso, Jorginho, reza… Vamos ganhar esse jogo! Jesus tá do nosso lado, tenho certeza.

— É, mãe, ele tá mesmo…

— Amém, filho… Seja o que Deus quiser, Brasil!!!

Luisa Mascarenhas é escritora e psicóloga. Criadora e autora da página de crônicas de humor Pirei Online, lançou em 2017 o livro A Vida Virtual Como Ela É.

1 Comentários

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Uma resposta para “Pirei na Copa | Cega em tiroteio”

  1. Manuela disse:

    Hahah! Retrato da familia brasileira!

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