Pisando em minas

Um texto sobre mulheres e bombas, sobre feminismo e puritanismo e sobre o Globo de Ouro mais explosivo da História

12.01.2018  |  Por: Flávia Guerra

image
Pisando em minas

“I can’t believe I’m still protesting this shit.” Em tradução livre, “não acredito que ainda tenho que protestar contra esta merda”. A frase, que volta e meia retorna a cartazes exibidos em protestos em todo o mundo, bem poderia ser o slogan dos debates incendiários desta semana. Incendiários sim. No campo minado que tem sido o mundo (online e off-line) contemporâneo, qualquer palavra plantada (seja propositalmente ou por descuido) pode, e tem, o efeito de uma mina letal, que, se tocada, é capaz de espalhar estilhaços nos mais distantes territórios, inclusive, e principalmente, no Brasil.

A explosão da semana foi desencadeada no momento em que um grupo de francesas, entre elas a atriz Catherine Deneuve, a diretora Brigitte Sy e a escritora Catherine Millet, pisou com tudo na mina plantada pelo movimento contra o assédio que as atrizes de Hollywood iniciaram após as denúncias de abusos cometidos pelo produtor Harvey Weinstein, em 2017. Tal onda reverberou em todo o mundo e teve, até o momento, seu ápice midiático na entrega do Globo de Ouro, no último domingo. No dia seguinte, as francesas reagiram publicando um manifesto no jornal Le Monde. Taxaram o movimento de puritano e defenderam “uma liberdade de importunar, indispensável para a liberdade sexual”.

Entre outros bastas do movimento lançado por profissionais do cinema norte-americano e ativistas de várias organizações, está o basta de mulheres ganhando menos do que os homens por funções iguais, o basta de engolir a cantada de mau gosto no encontro de negócios e o basta da “culpa é da saia curta”. Basta também de medo de retaliação, como bem disse Laura Dern ao receber o Globo de Ouro de Melhor Atriz Coadjuvante em série limitada por Big Little Lies. Que, aliás, discute, entre outras coisas, a questão das relações abusivas, a busca pela perfeição e a violência contra a mulher. Renata, a personagem de Laura, é tudo, menos uma mulher indefesa e santificada. Demasiadamente humana, ela tem nuances (muitas!) e sofre com os abusos e o bullying que sua filha enfrenta na escola primária.

E o que o “I Can’t Believe”, Laura Dern, Renata e Catherine Deneuve têm a ver entre si? Tudo. Há quem não acredite, mas ainda temos de desenhar a discrepância entre assédio, “importunar”, cantada, abordagem, paquera, bullying, retaliação… E vamos, homens e mulheres, ter de explicar e entender as diferenças ainda por muito tempo. Os velhos hábitos e padrões de comportamento que oprimem tanto homens quanto mulheres (ainda que o sexo feminino sofra infinitamente mais com a lógica machista do jeito que a nossa sociedade está organizada) demoram a mudar.

É óbvio?

Sim, vamos ter de debater o que parece óbvio. Parece óbvio, por exemplo, que o movimento feminista não precisa mais recorrer ao dicionário para explicar que assédio é, entre outras definições, “insistência impertinente, perseguição, sugestão ou pretensão constantes em relação a alguém” (segundo o Houaiss). Parece óbvio também que entre assédio, importunação, cantada e paquera haja camadas de separação, e que estamos apenas começando a discutir publicamente seus limites. Parece óbvio, mas não é. Já tem bastante gente querendo acabar com a conversa pra não se sentir tolhido.

A carta das francesas foi pendurada nos murais das redes virtuais e usada como um salvo-conduto para poder “importunar” sem se sentir assediador. Desde a declaração de Danuza Leão no jornal O Globo de que “toda mulher deveria ser assediada três vezes por dia para ser feliz”, houve quem debatesse a sério se, como a colunista observou, o Globo de Ouro não teria se transformado num grande funeral, uma vez que as celebridades foram de preto (em ação organizada para apoiar o Time’s Up, campanha contra o assédio sexual recém-lançada por mulheres de Hollywood).

Claro que há nuances no discurso de algumas das norte-americanas, que circularam pelo tapete vermelho com suas ativistas preferidas à tiracolo. Mas será que esse fora do tom pontual faz com que todo o discurso e a causa sejam anulados? Será que precisamos voltar tantas casas e nivelar o discurso com os argumentos de Danuza, que afirma que “as mulheres (que foram à cerimônia de preto) foram pouco paqueradas e voltaram sozinhas para casa”?

“I can’t believe I’m still protesting this shit.” É justamente o direito de voltarem sozinhas para casa sem sofrerem assédio na rua que defende o projeto.

É também o que querem as cerca de 30 mulheres que assinaram um texto-resposta à carta publicada pelo Le Monde. Elaborado por Caroline de Haas, foi publicado no site da Radio France e afirma, entre outras coisas, que “sempre que a igualdade avança, mesmo que meio milímetro, boas almas imediatamente nos alertam para o fato de que corremos o risco de cair no excesso. Mas já estamos mergulhados no excesso. Na França, todos os dias, milhares de mulheres são vítimas de assédio. Milhares sofrem agressões sexuais e violações. Todos os dias. A caricatura está justamente aí”, diz o texto.

Mão boba

Interpretações sempre são diversas e subjetivas e generalizações sempre são perigosas. Por isso, é preciso tentar ler as entrelinhas e questionar: será que o manifesto das francesas defende de fato a liberdade da mulher de ser uma jogadora com as mesmas condições táticas que seus pares masculinos ou ele apenas demonstra certa dó com a posição em que ficaram os rapazes?

Talvez valha voltar ao pensamento básico de que o direito de um abordar o outro termina onde começa o direito do outro de não querer ser importunado. O equilíbrio das relações está em algum lugar entre um início de uma conversa, um convite para um jantar, um elogio, mas jamais no abuso de poder, e muito menos na encoxada no metrô, na mão (nada) boba nos joelhos ou no “tentar roubar um beijo” quando não existe contexto para tal.

Ao que parece ainda vamos ter que protestar, desenhar, debater e, claro, discordar muito antes de se chegar ao tão sonhado equilíbrio, sem assédio, sem puritanismo e com liberdade sexual. Que assim seja. A hora é agora!

Flavia Guerra é jornalista e documentarista. Edita o blog especializado em cinema e TV TelaTela e é colunista de cinema do canal Arte 1 e da TV Band

 

0 Comentários

Comentar

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *

Deixe uma resposta

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *