Por que cuidar de nós mesmas é tão difícil?

A explicação está (também) no modelo de mulher criado pela sociedade. É por isso que quando falamos de autocuidado falamos de mudanças – com todas as suas dificuldades e descobertas

12.12.2019  |  Por: Tainá Muhringer

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Por que cuidar de nós mesmas é tão difícil?

Foi num papo de bar com uma amiga que o assunto veio à tona. Ela, que está grávida, falou das sensações e mudanças mil que sentia. Depois, me contou de uma amiga dela que não foi trabalhar pois estava no primeiro dia de menstruação e sentiu que precisava se recolher. Me explicou, em suma, sobre a importância de se escutar e respeitar seu corpo.

Percebi que nunca havia parado para pensar no assunto. Eu, que sempre fui bastante racional, a vida toda concebi meu corpo, antes de tudo, como algo que estava a serviço da minha mente. Afinal, como sociedade, somos constantemente ensinados a ignorar o que sentimos. Quando algo nos escapa, vamos ao médico tratar dos sintomas. Como máquinas que, se sentem algo, estão quebradas e precisam ser consertadas para continuar produzindo.

Recentemente, comecei a fazer terapia. São muitas as vezes em que minha terapeuta pergunta: o que você sente? E essa perguntinha, que devia ser simples e óbvia, é sempre a mais difícil de ser respondida. Eu raramente sei o que sinto.

Não são poucas as vezes em que ignoro meu corpo e meus limites. Todo primeiro dia de menstruação sofro de uma enxaqueca enlouquecedora, mas jamais pensei em faltar ao trabalho por conta disso. Em algum lugar, isso me soa como errado, ou motivo de vergonha. Claro, em nossa sociedade, poder faltar um dia no trabalho é um luxo para poucos. Mas entendi que toda essa dificuldade tem raízes também em um outro lugar, bastante complexo. Por trás do meu medo, existe uma incapacidade de me ver como verdadeiramente dona de meu corpo.

Afinal, o corpo da mulher é socialmente visto como um devir para o outro. Um corpo que deve cumprir uma função: é, antes de tudo, feito para engravidar. Que deve estar sempre pronto para agradar o marido, sempre a postos para servir. Um corpo nunca para nós, sempre para o outro (um outro, via de regra, masculino e heteronormativo).

O que meu corpo me fala? E o quanto eu, todos os dias, ignoro o que está sendo dito?

É esperado que a mulher esteja sempre bela, saudável e em pleno funcionamento. Mas sem exagerar. Quando se é mulher, é preciso tomar cuidado ao escolher o que vestir, para não despertar demasiado o desejo masculino. Aprender a esconder a sexualidade, sob o risco de ser considerada histérica. Não deixar transpirar as emoções, para não ser chamada de passional, instável, louca. É preciso se doutrinar para ser um corpo adequado, sem ultrapassar a medida. Um exercício constante de não se deixar transbordar.

Por trás disso, há a ideia de que todo corpo feminino deve ser controlado. E esse controle passa por um domínio simbólico, que impede que não consigamos mais nos enxergar como donas de nós mesmas. E, se não nos pertencemos, continuamos a ser obedientes. A lógica patriarcal não é questionada. A mulher livre representa uma ameaça.

Quando comecei a perceber isso, ficou difícil não me escutar. O que meu corpo me fala? E o quanto eu, todos os dias, ignoro o que está sendo dito?

Me escutar não tem sido tarefa fácil. Venho pensando um tanto sobre a importância – e a dificuldade – do autocuidado.  Ao mesmo tempo que entendo que me cuidar é fundamental, é também algo difícil. Tem dias que assusta. Tem um tanto de momentos em que me dá medo de entender quem eu sou.

Tenho aprendido a entender o ato de me cuidar como um processo, e que tudo que envolve uma real mudança interna traz consigo dificuldades, dores. Mas, também, prazeres e novas descobertas.

Para mim, me escutar tem sido um caminho para a autonomia. Uma possibilidade de quebrar a lógica imposta para nós, mulheres, e a tentativa de significar um novo espaço de existência. Uma chance de existir para mim, sem a mediação do olhar masculino.

Se escutar é se respeitar. É abrir-se para a possibilidade de estar bem com você e por você, por inteiro. É um ato de coragem e liberdade. Se nada assusta mais do que uma mulher livre, é porque nada é mais potente do que isso.

 

Tainá Muhringer  é roteirista, tendo trabalhado em diversos projetos, tanto para TV quanto para cinema

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