Por um ativismo do desacerto

'Não são todos que sabem se comunicar de acordo com o vocabulário da militância', escreve a psicóloga e ativista trans Sofia Favero ao refletir sobre a polêmica acerca do comentário de Rubens Ewald Filho, que, na transmissão do Oscar, referiu-se à atriz transexual Daniela Vega por 'rapaz'

12.03.2018  |  Por: Sofia Favero

image
Por um ativismo do desacerto

Foto: Michael Baker / A.M.P.A.S.

Há apenas alguns anos, dizer que transexuais haviam nascido em corpos errados era completamente comum. Uma rápida pesquisa e é possível encontrar diversas travestis e transexuais relatando suas experiências como aquelas de pessoas aprisionadas em suas próprias anatomias. Hoje em dia, contudo, isso é diferente. Não se refere mais às identidades trans dessa maneira. Não se considera, sequer, que tais pessoas tenham nascido com algum gênero. Nasceram peladas, sem dente e com alguns pequenos fios de cabelos. Após isso, a depender do genital, receberam uma etiqueta azul ou rosa. Pronto. Apesar de parecer, essa não é uma discussão nova. Desde o “não se nasce mulher, torna-se” (1949) da Simone de Beauvoir que os debates de gênero têm se amparado em uma perspectiva social.

De lá pra cá, os trajetos percorridos para explicar o que é a transexualidade sofreram uma série de transformações. Os jeitos considerados adequados de falar estão mudando cada vez mais rápido. E, no bojo dessa metamorfose linguística, muitos ficaram para trás. Não deram conta de acompanhar. Não nasceram sabendo. Acontece. Faz parte das disputas do cotidiano. Foi o caso de Rubens Ewald Filho, jornalista e comentarista da TNT, recentemente reconhecido por uma série de falas polêmicas durante a transmissão do último Oscar, no domingo 4 de março. Entre elas, por ter dito que Daniela Vega, estrela do filme “Uma Mulher Fantástica”, era – na verdade – um rapaz. Daniela é uma atriz chilena, responsável por protagonizar o filme vencedor da estatueta de melhor película estrangeira. Tem 28 anos. Canta ópera. É geminiana, como gosta de destacar. E, além disso, também é transexual.

“Essa moça, na verdade, é um rapaz.” Esse comentário gerou uma sequência de discussões na internet, um tanto quanto negativas, pois parte daquela antiga noção de que pessoas trans são versões dissimuladas de si mesmas. Impostoras. Falsas. Traiçoeiras. E de tanta coisa que poderia ser dita a respeito da atriz, essa parece ter sido a que mais chamou a atenção. Foi desagradável. Claro, há de se destacar que existe uma curiosidade em torno da transexualidade, e que essa curiosidade é saudável. Naquele momento, informar que a Daniela era transexual poderia ser bastante interessante, inclusive, tanto pelo contexto histórico da premiação quanto pelo impacto político de sua posição naquele cenário. Temos uma transexual ocupando um lugar relevante dentro da Academia de Cinema, um ambiente que, até então, não era a sala de estar dessa população.

De todo modo, o canal se pronunciou depois da repercussão ruim. Não seria arriscado dizer que Rubens provavelmente será afastado da emissora e que esse episódio custou a ele um alto preço. Muita gente vibrou. Achou a possível demissão justa. O que nos leva a reconhecer que seu comentário foi infeliz, de fato. Mas até que ponto esse mesmo comentário pode ser equiparado a um discurso de ódio? A algo abertamente discriminatório? Se assumimos que esse não foi um comentário de cunho pejorativo (por ex.: “traveco”), diferente dos recentes episódios racistas no jornalismo, é preciso adotar outra estratégia.

Rubens poderia ter informado apenas que ela era uma atriz transexual. Poderia ter ido além e comentado que aquela talentosíssima atriz interpretou na arte um dilema pessoal, a transexualidade. Poderia ter falado que a atriz, em sua infância, havia sido um menino. Não é o mesmo de dizer que ela ainda o é. São diversas estratégias possíveis para repassar a mesmíssima informação. Mas a vida real não funciona desse modo. Dificilmente um comentarista teria dito algo polido como “foi designada homem ao nascer, mas se identificou como do gênero feminino posteriormente”. Sabemos disso, mas apesar de sabermos, continuamos cobrando uma gramática política atualizada, coerente, alinhada a nossos discursos. O que deixa de fazer sentido a partir do momento que essa cobrança não permite o erro, o desacerto, a vacilação.

Não são todos que sabem se comunicar de acordo com o vocabulário da militância. E, por incrível que pareça, o comentarista referiu-se à atriz de uma maneira similar a que grande parcela dos expectadores faria. Ou, indo além, de maneira que até muitos dos hoje percebem seu erro fizeram um dia. Naturalmente que o lugar ocupado por um comunicador é mais delicado. É preciso ter mais tato e cuidado. Estar atento a quaisquer possibilidades de expressar uma ofensa. No entanto, mesmo com esse esforço, as pessoas eventualmente irão errar. E aqui é necessário não perder de vista que nós também erramos, só que, diferente desse e de tantos outros casos, felizmente não temos uma câmera em nossa frente. Pessoas são… pessoas. Elas nem sempre sabem usar as palavras certas, mas nem por isso merecem ser castigadas. Às vezes, um pouco de direcionamento resolve tudo isso.

Claro, o que está em jogo é um comentário de mau gosto, que serviu de gancho para fazer essa discussão sobre a capacidade de aprender através do desacerto, que pode ser um disparador para uma gama de reflexões poderosas. Talvez alguns considerem isso desnecessário. Talvez pensem que é um grande desperdício de palavras em defesa de um personagem caricato. Talvez, com muita sorte, vejam que essa é uma conversa desarmada. Um tipo de aproximação desajeitada. Sobre superar essa necessidade de tentar estar mais certo do que o outro. Sobre a forma que os vacilos alheios são ligeiramente apontados por dedos que vão, mas depois voltam e se cruzam. E sobre, quem sabe, ver o quão desproporcional têm sido as medidas adotadas até mesmo pelos que se consideram bons e justos.

Em outras palavras, são tempos em que uma militância historicamente preocupada com as lacunas humanas tornou-se esse instrumento de disciplina. Por um retorno à possibilidade de aprender na diferença, na troca, no encontro, e por meio de desacertos.

Sofia Favero é psicóloga, ativista trans e vice-presidente da Organização e Movimento Sergipano de Transexuais e Travestis

4 Comentários

Comentar

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *

4 respostas para “Por um ativismo do desacerto”

  1. Alice Marcolino disse:

    A identidade de gênero das pessoas trans não é “vocabulário” da militância. O nome do filme é “uma MULHER fantástica” e o nome da atriz é DANIELA Vega. Não me parece muito difícil respeitar isso e supor que ela seja uma MULHER. A intenção dele era obviamente ridicularizar e NEGAR conscientemente a construção identitária de uma pessoa. Construção essa que não passa, necessariamente, pela militância. Uma pessoa trans não precisa ser militante para ser trans e para exigir que seus pronomes sejam respeitados. Uma pessoa trans também não é exemplo de teoria nenhuma. Nossa experiência passa pelo nome, pelo corpo, pelo desejo e por coisas que estão aí a céu aberto pra todo mundo ver, não só num livro teórico ou num textão de internet. Só não vê quem não quer. Me parece que é muito mais uma vontade consciente de ser transfóbico que está sendo defendida neste texto do que uma ignorância sobre quais “os termos certos” da militância.

  2. Karina Paola Morales Cárdenas disse:

    Rubens tem sido desagradável há anos, fazendo comentários machistas e gordofóbicos em todas as transmissões do Oscar. Não é de hoje que ele é miserável nas suas críticas e o declínio do seu caráter como crítico era claro. Ele parou de dar dados sobre os filmes e comentar sobre a relevância das produções para falar coisas como, “Ela estava ótima no filme, mas deu uma engordada”. É tamanha a desconexão dele com a realidade e o que o público espera desse tipo de evento, que ele, já confortável em seus comentários, não pensou antes de dizer que Daniela Vegas era um “rapaz”. A função dele é compreender o atual momento da premiação e transmitir isso para o público com as suas críticas e seus comentários. Ele não tem feito isso. Não creio que, nesse caso, seja uma questão de vocabulário ou militância. É uma questão de informação, de atenção ao mundo.

  3. Paula Carvalho Joly disse:

    Ótimo texto.

  4. Couss Ange disse:

    Obrigada. Vou levar seu discurso para outras áreas da minha vida. Tudo é um processo de aprendizagem. Temos que nos revisar constantemente, até em nossas críticas.

Deixe uma resposta

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *