Pornografia da violência: o tesão no sofrimento e a naturalização dos absurdos

Por que obras feitas por mulheres, pessoas negras ou LGBTs têm mais atenção quando tratam de dores?

18.05.2021  |  Por: Clara Averbuck

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Pornografia da violência: o tesão no sofrimento e a naturalização dos absurdos

Parece que obras feitas por mulheres, por pessoas negras, por LGBTs têm mais atenção quando tratam de violência. Vida e obra. Parece que nossas falas, junto com o horror e as hashtags, causam algum tipo de prazer obscuro. Não é explícito. Minha impressão, enquanto escritora que está há 20 anos rodando, é que a nossa dor mobiliza mais do que nossa alegria, nossa fantasia, nossa celebração.

É a pornografia da violência, da pobreza, da miséria, da morte, do sangue e do sofrimento. Como se a sociedade se isentasse de mudanças ou de responsabilidade apenas expressando uma indignação vazia.

Isso quando não nos diminuem. Quando não duvidam ou até nos culpam por nossas agruras. É assim com violência. Com estupro. Com fotos de pessoas agredidas, de preferência registrando o que aconteceu explicitamente, olho roxo, fraturas, machucados, sangue. Desde sempre o sensacionalismo vende. Melhor ainda se for contra “inocentes”, crianças, grávidas, igrejas, talvez. Mas só igreja. Se for terreiro vai ter gente dando razão. Se for uma puta vai ter gente dando razão e achando pouco, se for uma mulher que bebeu ela estava pedindo, se for na favela é tudo bandido. Se for vítima de violência doméstica devia ter denunciado antes.

As obras literárias, cinematográficas, a poesia, a fotografia, se não registrarem essas dores, nem chamam a atenção.

A nós não é permitida a subjetividade da ficção. Subjetividade alguma, aliás. O dia-a-dia tem que ser violento para ser interessante, tem que ser denúncia, não pode ser uma alegria dividida, um olhar bonito, uma poesia. Não. Se for uma história baseada em fatos reais é melhor. Violenta, claro. Uma reportagem, um boletim de ocorrência, uma desgraça.

Não basta a realidade; tem que desdobrar a realidade em prismas de dor. Personagens que sofrem, as lágrimas das mães, os ossos quebrados das travestis que apanham. Tiro da polícia.

Do meu lugar de mulher branca, da minha janela, com meus pés no taco, vejo o sofrimento a cada esquina. Nem preciso sair de casa. Nem preciso mesmo sair de casa, é só ler notícias, ver as redes de meus amigos que têm ainda a gana das ruas porque nem em casa é seguro, se eu não entrar em lugar algum ainda o sangue me chega por meio da indignação de alguém que acha que espalhando a violência vai acabar com ela.

Que absurdo!, eles dizem. E espalham mais sangue, talvez na inocência de achar que vai cessar diante de tantos mais “que absurdos”.

A violência se torna normal. Nada mais é chocante. O sangue sendo lavado por baldes, as manchetes dando detalhes da violência contra uma criança de classe média enquanto outras tantas desapareceram por nada mera questão de cor e classe, a mulher que apanhou do homem do Tinder. Apenas notícias. Logo vem outro horror. Nos acostumamos com o barulho.

Só pra dar uma pensadinha: quantas vezes você se horrorizou hoje?

Clara Averbuck é escritora e tem nove livros publicados. Sua obra já foi adaptada para o cinema e o teatro, tendo sido publicada em Portugal, Inglaterra e toda a América Latina

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