Precisamos falar sobre masculinidades femininas
Enquanto o homem feminino chega ao mainstream, a mulher masculina ainda é marginalizada
17.05.2018 | Por: Adriana Azevedo
O feminismo é um espaço de disputas desde o tempo das Sufragistas, quando Sojourner Truth fez seu famoso discurso “E não sou uma mulher?”. Mulheres negras contestavam o lugar em que a luta pelo voto feminino se encontrava: as pautas levavam em conta o modelo de vida e as necessidades de mulheres brancas, sem pensar em “mulheres” no plural. Essa forma de se pensar a mulher como uma categoria no singular, sem modos plurais de existir, é até hoje a principal disputa dentro do feminismo.
Da mesma forma que vemos até hoje as críticas internas ao feminismo branco feito por mulheres negras, precisamos prestar atenção também a outras sujeitas invisibilizadas pela narrativa hegemônica.
Na década de 1970 as disputas se pluralizaram, principalmente com a emergência do movimento LGBT após a Revolta de Stonewall. O feminismo cis-hetero-branco sempre alegou que suas pautas de desigualdade perante aos homens deviam ser prioridade, e que as pautas lésbicas, por exemplo, desvirtuavam a luta. No filme If These Walls Could Talk 2 vemos de forma bem explicativa, no capítulo protagonizado por Michelle Williams e Chlöe Sevigny, as complexidades desse momento político no qual feministas heterossexuais rejeitavam lésbicas, e lésbicas hippies femininas rejeitavam, por sua vez, as tradicionais butchs – lésbicas masculinas que se vestiam com os trajes tidos socialmente como “de homens” (de terno, gravata e calça social, ou com bomber jacket e jeans, à la James Dean). As mulheres masculinas eram lidas, portanto, como aquelas que abraçavam os signos culturais do homem opressor, como se masculinidade e feminilidade não fossem ambas construções artificiais e culturais que existem no patriarcado.
Existe um livro que sempre me instigou e se tornou pra mim uma espécie de livro de cabeceira. Não tem tradução dele no Brasil e o acabei encontrando em uma viagem a Buenos Aires em 2010. O título é Female Masculinity (1998), de um autor trans chamado Jack Halberstam – na época ele assinava como Judith Halherstam. O autor desenvolve uma espécie de historiografia das manifestações das chamadas “masculinidades femininas”, na história social e na cultura – desde as mulheres que vestiam ternos e gravatas na cultura butch dos cafés lésbicos europeus da década de 1920, passando pela cultura drag king norte-americana ou por personagens masculinas presentes no cinema. Procurem nas imagens do Google sobre o bar de Paris nos anos 1920 Le Monocle: são imagens maravilhosas sobre as masculinidades alternativas que existiam nas sombras da era moderna cis-hetero-patriarcal.
Jack defende uma ideia que eu considero extremamente importante para o feminismo, a de que “a masculinidade não deve e não pode ser reduzida ao corpo do homem e a seus efeitos”, explicando que pretende mostrar como que a masculinidade feminina está longe de ser uma “imitação da virilidade”. A Masculinidade Feminina é tão importante de ser estudada ou debatida porque ela desvela, ou, ao menos, nos dá uma pista, de como é construída a masculinidade.
Podemos evocar a popular frase de Simone de Beauvoir “não se nasce mulher, torna-se mulher”, e aplicar aos homens “não se nasce homem, torna-se homem”. A pretensão de neutralidade da masculinidade hegemônica encarnada na virilidade é posta em cheque pelas masculinidades alternativas – desde homens trans, passando por pessoas transgênero não-binárias ou mulheres lésbicas masculinas. A masculinidade é um aglomerado de signos que podem ser ressignificados, de acordo com os corpos que os utilizam.
O autor nos confronta com algo que parece superimportante para o nosso debate contemporâneo. Ele diz que prestamos pouca atenção na masculinidade feminina enquanto mostramos muito interesse na feminilidade masculina. Pensemos na cultura brasileira LGBT contemporânea: temos diversas personalidades importantíssimas que são de alguma forma a expressão dessa feminilidade masculina – bichas efeminadas e as maravilhosas travestis da música, as nossas drag queens, como Pabllo Vittar, que foram definitivamente para o mainstream. Isso é ótimo, isso dá visibilidade a mulheres trans e feminilidades alternativas em um país campeão em assassinato de travestis e transexuais. No entanto, onde estão as masculinidades alternativas na cultura e nos nossos debates? Halberstam argumenta que a indiferença generalizada em relação às masculinidades não-hegemônicas tem claras motivações ideológicas, “e tem servido de apoio a complexas estruturas sociais que vinculam o masculino à virilidade, ao poder e à dominação”.
A capa do livro de Halberstam na edição em espanhol é ilustrada com uma fotografia de uma pessoa forte, com calça militar, enquanto a contracapa revela que essa pessoa possui seios. Ao carregar esse livro pelas ruas ou até mesmo dentro de casa, ouvi diversas frases de inquietação ou de enojamento. “Nossa sociedade demonstra muita inquietação no fato de existirem mulheres masculinas”, está escrito em uma das páginas do livro.
Não é à toa que as mulheres cis-hetero acabam se tornando agentes da vigilância da norma de gênero. Outro dia eu estava assistindo à defesa de tese de um grande amigo na PUC-Rio e fui fazer xixi. Ao puxar a porta na minha direção para sair banheiro, uma jovem universitária com uma blusa com um símbolo feminista empurrava a porta por fora, na intenção de entrar. Quando ela me viu, levou um susto. Pensei que por se surpreender com o impulso da porta (que acumulou a minha força e a dela). Ledo engano. Na realidade, ela se assustou com a minha figura, com a minha aparência andrógina. As duas amigas que vinham atrás disseram em voz alta e tom de escárnio e em meio a risadas “nossa, achei que fosse o banheiro masculino!”, e a que tinha se assustado comigo falou “eu também!!!”.
Essa é uma cena bastante frequente. Existe um pequeno texto de Paul B. Preciado que se chama Sujeira e Gênero: Mijar, Cagar, Masculino, Feminino, que fala justamente sobre o banheiro público como esse lugar de vigília de gênero, e como mulheres femininas tratam a presença de mulheres masculinas nos banheiros públicos como algo a ser recriminado, ou rejeitado, nem que seja com a sutileza de um olhar de reprovação ou de inquietação.
Já passei por essas situações algumas vezes, enquanto só precisava satisfazer minhas necessidades mais básicas enquanto um ser. Se isso é tão frequente e se mulheres, feministas ou não, oprimem pessoas transgênero masculinas, lésbicas masculinas ou caminhoneiras que frequentam o banheiro feminino, não é hora de debatermos essa opressão? Espero que essa seja a minha contribuição ao dia do combate à LGBTQIfobia. Um feminismo interseccional e plural, que acolhe pautas e tensões, e que não invisibiliza determinadas vivências.
Adriana Azevedo é feminista e crítica cultural com trajetória de sete anos em pesquisa acadêmica sobre representatividade de minorias sexuais e de gênero no audiovisual, nas artes e nas produções culturais contemporâneas
6 respostas para “Precisamos falar sobre masculinidades femininas”
Que pauta. Não vou comentar muito porque mexe comigo e eu não sei ainda como expressar o que eu sinto. Mas eu tbm sinto preconceito, não apenas nos banheiros, mas em qualquer espaço muito HTzinho, normalmente constato que sou eu que estou na festa errada, um sentimento de “opa, essa não é minha faixa etária”. E os mais novos que eu estão mais não-binários do que nunca! E eu, tia, não me enxergo (e nunca me exerguei) plenamente nem no grupo trans, nem no grupo cis, e parte do que mais me entristece é perceber como tive que ir me moldando à sociedade para ser aceita, ora, eu ainda não sou aceita, mas, digamos menos provocada. Desenvolvi minha persona humorista que interage com todo mundo, do mais escroto ao mais firmeza. Entendendo que se eu não mexer com ninguém, ninguém mexe comigo. Mas, por exemplo, morro de vontade de ter o cabelo bem curtinho, tipo acordei to pronta, e olha, me falta demais essa coragem! E pq? Pq SEI que, se eu já chamo atenção sendo gorda e lésbica e masculina, se eu ainda tiver o cabelo curtinho… vai me gerar uma preguiça que eu não quero ter, sabe? Então assim eu vou, bem cabeludona, enquadrada no estilo “loka” “rocknroll” quando na verdade eu sou apenas eu.
Maravilhosa sua posição, Larissa Pimenta, ela expõe muito bem o que o texto coloca e o que nós, mulheres que não performa feminilidade, passamos todos os dias: O feminismo nos exclui, nos marginaliza e nos fere tanto quanto o machismo. Na sua postura de relato sobre o estupro que nós mulheres sofremos, o que justificaria sua posição, dele, só posso dizer uma coisa: Nós somos duas vezes estupradas, primeiro por ser mulher e segundo por precisar de correção. Mas não usarei dessa realidade para aferir quem é mais violentada. Neste caso, falta em ti e em todas nós aquilo que tanto pregamos no feminismo: Sororidade.
Arraso de abordagem! Me revolta muito, quando mulheres fazem questão de performar feminilidade para enfatizar sua heterossexualidade, numa tentativa de se “defender” de outras mulheres que fogem dos padrões heteronormativos, como se estas fossem assediá-las (assim como muitos homens fazem), e também, para que elas não “corram o risco” de serem interpretadas como lésbicas ou bissexuais.
Essas questões NUNCA são debatidas dentro do feminismo. Parabéns e obrigada!
Eu entendo que você deve ter estudado bastante e já ter escutado o que eu vou digitar: o banheiro feminino é o único local de segurança da mulher. Num mundo ideal onde as mulheres não são violentadas 24/7 a divisão do banheiro feminino me parece viável mas essa não é a realidade. A visão masculina nos assusta porque ela nos estupra, nos assassina, nos diminui. Ser uma mulher masculina perpassa em entender isso: mesmo que na teoria esteja escrito como devemos sentir, sentimos medo por podemos sentir; desconsiderar esse medo é um descaso com a vivência das mulheres, que majoritariamente reproduzem feminilidade e são alheias a esse debate de inclusão.
De qualquer forma, grata por puxar o assunto, espero logo poder escrever um texto também falando do que expus aqui.
Bom dia
Que texto ❤️
Obrigada!